domingo, fevereiro 04, 2007

O Mostrengo (rep).



«O mostrengo que está no fim do mar
na noite de breu ergueu-se a voar;
à roda da nau voou três vezes
voou três vezes a chiar,
E disse:" quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo
mus tectos negros do fim do mundo?»
E o o homem do leme disse, tremendo:
"El-Rei D.João Segundo!"»

- Fernando Pessoa, "Mensagem"

A figura do mostrengo é eloquente. Ainda hoje brame, para quem o quiser ouvir. Ainda hoje apavora quem o escuta e, pelo zoar do seu estrugir desumano, o imagina envolto em fiapos de tormento e cortinas de pesadelo.
Em Quinhentos, nesse tempo de coragem, de Audácia, mais que de ganância, os mares ressumbravam, infestados. Ao longe, nos oceanos, que iam vomitar-se lugubremente no abismo tartárico, senão na goela insaciável do próprio inferno em chamas, uivavam abominações medonhas, habitavam pavores inomináveis. Sob o manto vertiginoso das águas, moravam braços descomunais, tentáculos mortíferos, mandíbulas escancaradas prontas a devorar, a varrer e a despedaçar, sem dó nem piedade, a casca de noz e o insecto que se atrevessem, que experimentassem a viagem, que ousassem sequer o pensamento. Enfim, emboscados, sempre à espreita, famintos de dor e carne humana, cardumes de horrores patrulhavam os mares ignotos. Para quem escondia os olhos –como hoje ainda esconde -, o mostrengo era tudo isso. Escutava-se e dava vontade de nunca ter nascido.
Mas, na verdade, o mostrengo não habitava os mares: rodopiava fantasmagórico na alma dos homens. Tolhia-lhes o ânimo e quebrantava-lhes a força. E chiava –oh, com que tenebror ele chiava! - a enregelar o coração e a liquefazer a espinha. Que até os dentes crepitavam, os cabelos encaneciam e o chão nos chamava, em refúgio, para o mais humilde e obscuro dos seus orifícios.
Só que havia uma semente - uma centelha de odisseia - que Ulisses deixara por estas bandas. E uma semente pode muito. Mais que todos os medos. Mais que todas as filosofias, literaturas e ciências! Mais que a treva e os abismos. Porque uma semente sabe o caminho do céu. Rompe a lama e as angústias, fende os ares e as neblinas e estende os braços, feita árvore, a abraçar a luz e o firmamento. A saudar o sol e as estrelas. A respirar o sopro divino que dá vida ao mundo.
As sementes são a lenha dos sonhos. Os portugueses de Quinhentos foram a carne dessa semente.
E do chão agreste, triste, sujo e escuro, onde o medo os agrilhoava e mantinha encarcerados, rasgaram horizontes e elevaram-se para uma luz que os guiava a sul de todos os crepúsculos, à procura de edens e fontes sagradas, em busca de tesouros, de aventuras, de terras exóticas, mas, acima de tudo, ou como estrela guia para tudo isso, do mais bem-aventurado e exótico de todos os tesouros: a verdade.
Foram banhar-se no sonho e no abismo. Foram para o mar enfrentar o mostrengo que levavam na alma.
Guardamos essa memória nas veias e sabemos que não foi fácil. Sabemos que não foi uma coreografia sonoplástica e narcótica, como os filmes de hollywood. Que não foi insípido e inodoro. Que o cheiro a merda e sangue, a escorbuto e malária, a desespero e desinteria se misturaram muitas vezes, quase sempre, com o perfume da maresia, que entra pelos pulmões e descongestiona a alma. Que as lágrimas das mulheres salgaram o cais e as maldições dos velhos crismaram o vento. Que isso toldou o horizonte e açulou o mostrengo que de dentro de nós –nós naquele tempo – assombrava o mar.
Mas nós –nós naquele tempo – nós sem automóveis, televisões, figoríficos, nós sem electricidade nem água canalizada, nós sem subsídios nem peritos de pintelhices a granel, nós sem doutores da mula russa a parirem reformas de empreitada, nós sem formação profissional nem confortos, sem sindicato nem segurança social, nós sem computadores nem cinemas, nós sem petróleo nem diamantes, fomos capazes de uma obra colossal, fomos capazes dum milagre, a semente fez-se árvore.
Nós –naquele tempo muito mais magros, destituídos, ainda mais indigentes e pequenos que hoje – fomos capazes. Porque é que hoje não somos? Não somos capazes porque nem sequer somos nós. Entre aquele tempo e este tempo interpôs-se um limbo onde vagamos quais sombras penadas. Sobra-nos a matéria, o esterco que nos amortalha; sobram-nos bugigangas em catadupa, adubos, pesticidas e cuidados de flores de estufa, mas falta-nos o essencial: a vontade, esse gume afiado do espírito. Falta-nos aquele que a vaca da Isabel Católica, ao saber da sua morte, disse: “Morreu o Homem”
Mas não apenas o homem-rei, símbolo de um povo, da união sagrada entre terra, mar e gente, e duma vontade colectiva; também, e sobretudo, o Homem dentro de todos nós, o homem que sonha, o homem que navega, o homem que acredita.
Porque em vez dele, a velar o seu sono forçado, soltando peçonha e susto, reina o mostrengo. Adeja, rodopia e chia sem parar. Entoa a sua umbrífera lengalenda, que cobre, como uma névoa tóxica, venenosa, o sol e as estrelas, e entranha-se nos ossos, nos músculos, nas mentes, a roubar-nos toda a coragem, a decantar-nos toda a esperança.“Sois fracos!”, chia ele, escarninho. “Sois débeis! Sois poucos! Sois pobres! Sois atrasados! Sois obsoletos! Sois a escória da Europa! Sois vis! Sois preguiçosos! Sois desgovernados, desorganizados, viciados, dependentes, endividados, mesquinhos, intriguistas, fala-baratos, quezilentos, alarves, pacóvios...sois o desespero de Cristo!...” As suas asas negras esvoaçam por cima de nós, sombrias e, à noite –nesta infinita noite em que se tornou a nossa vida-, pressentimos que ele poisa, de colmilhos afiados, para nos vampirizar os sonhos. Mas mesmo nessa pausa hedionda, a sua cantilena exasperante não cessa: repercute em ecos descarnados, lutuosos, nas abóbadas do nosso pavor.
Mas que pensáveis vós que ele, esse mesmo mostrengo chiante, uivava há quinhentos anos atrás? -A mesmíssima gosma paralizante, a gémea baba de aranha dissolvente. Sem tirar nem pôr.
E os homens - daquele tempo em que ainda havia homens - deixaram para trás as lágrimas das mulheres, as maldições dos velhos, o espanto maravilhado nos olhos das crianças e saíram mar a fora, levando todo o medo consigo, e foram enfrentar a ululante avantesma lá onde o mundo acaba e o abismo começa. Saíram as naus da barra e o mostrengo infame ia por cima delas, como uma sombra de Outro-Mundo.
Choraram as mulheres porque viam ambos, praguejaram os velhos porque viam a abominação, maravilharam-se as crianças porque eram seus os sonhos que iam dentro dos homens, com a forma de mastros e velas.
Os homens não voltaram. Só o mostrengo voltou.

«O mostrengo que está pra cá do mar
Na noite de breu continu’a voar;
Por dentro da alma voa mil vezes
Voa mil vezes a agoirar,
E diz: “quem persiste ainda a sonhar
Com algo que não meu trono execrando
com céus acima deste pó imundo?
E a nau sem leme geme, sangrando :
”Quem há-de vingar D. João Segundo?...”

27 comentários:

Anónimo disse...

O mostrengo que voltou évocê, de certeza!

dragão disse...

Sendo confortável, a posição da lombriga, não permite todavia as melhores perspectivas. Parasite, em boa harmonia, mas não dê palpites!...
Poupe-nos.

Anónimo disse...

parabéns Dragão pelo texto e pela repostagem. textos como estes, é que deveriam ser obrigatórios no ensino básico.
mas a d. lurdes da educação era capaz de não comprennder o texto, achar que eram letras a mais, confundir a mensagem com o mensageiro e mandar o letrado Dragão ....para os supranumerários.

have nice day

Anónimo disse...

Absolutamente divino, Dragão, parabéns!
Hoje, resta-nos o "Homo Lusitanus" conhecido no mundo por Zé Povinho.
Imagem deprimente e incomodamente labrega que nos espreita do fundo do nosso espelho colectivo, este rosto bronco de um pascácio rural, este campónio mal vestido, de barba rala, colete e chapéu preto braguês, rústico, calças de fazenda ruim, mãos nos bolsos, riso alvar, espécie de resignado Sancho Pança sem Quixote.( como lhe chamava a minha mamma, para desespero do meu pai que o idolatrava). Este protótipo nacional de uma ingenuidade lorpa que se limita a um mero papel passivo de pagador de impostos, suando, trabalhando, dormindo, rezando e soltando os vivas necessários aos que vivem à custa dele.
Apesar de ter-se modernizado, europeizado, alfabetizado e terciarizado, continua a representar a mesma inércia, a mesma comunidade nacional sofredora, apática, descrente, niilitas, incapaz de se expressar, de justificar os queixumes, de teorizar sobre a estrutura da Pólis ou imaginar uma melhor forma de a melhorar ou substituir... porque não sabem falar nem têm qualquer tipo de inclinação para a crítica cogitativa.
Tendo os subsídios da EU como objectivo para se absterem de trabalhar para quê lutar contra o Mostrengo?
"Quando é a hora?"



P.S: Eduardo Salamonde, crítico dos diversos tipos criados pelos demais artistas estrangeiros, sublinhava:" nenhum é tão exacto, tão sentido, tão perfeito, tão étnico, tão nacional como o Zé Povinho".

Anónimo disse...

Bravo,Dragão!

Anónimo disse...

Vocês davam todos uns excelentes comentadores!.. Pelo menos uma coisa já sabem fazer bem, dizer mal do povo português. A outra é que se julgam melhores do que ele. E a terceira, de que ainda não se deram conta mas que eu digo já, é que na realidade são infinitamente inferiores a quem de tanto mal dizem. Num próximo comentário direi porquê, se estiverem interessados e me pedirem de joelhos.

Anónimo disse...

é por estas e por outras (os textos do Dragão) que o Dragoscópio é um BOI.

Anónimo disse...

estes 2 ultimos posts confirmam a definição perfeita sobre o que escreve o dragão e o akher para não perceber o quanto os dois sofrem por ver um portugal atrasado e conformista !!!

Anónimo disse...

Muito bom post, Sr. Dragão!
A verdade incomoda muito os espíritos mediocres.

Anónimo disse...

"A verdade incomoda muito os espíritos mediocres"

Só um espírito medíocre para dizer uma coisa tão medíocre. Medíocre leva acento no i, seu burro.

Anónimo disse...

cá está mais um a matar mensageiros

Afonso Henriques disse...

E os anónimos levam acento aonde? Nas nalgas, provavelmente.
Cumprimentos ao Dragão por este excelente
texto e fogo à peça na canalha anónima que infesta terreiros e pardieiros com a baba fétida que lhes transborda da alma.

Anónimo disse...

Comoveu-me, Sr Dragão.

Anónimo disse...

"Só um espírito medíocre para dizer uma coisa tão medíocre. Medíocre leva acento no i, seu burro.
"

Assina-lá o teu comentário ó cobardolas! És sempre o mesmo, até já te conheço: és um vermezito que de quando em quando aparece por aqui.
Nunca te enganaste não é minha besta "cosmopolita"?

O mediocre aqui és tu. E é por isso que reages assim. A tua reacção é típica. Olha-te ao espelho naco de verme.

Anónimo disse...

ahahahahaha!
Vocês são todos tão parvos!... Mas que asnos, nem dá para acreditar que sejam portugueses. Devem ter sangue de mouro. E inteligência de mosca. E pilinhas minúsculas. AHAHAHAHAHAH!...

Anónimo disse...

Mas quem é esta doente mental?
Tem uma grande fixação nas pilinhas. Cuidado, ainda dás em pedófila!

Anónimo disse...

Reagem, os anónimos, pq sabem q é verdade e pq se sentem culpados da realidade!

Anónimo disse...

ainda não ultrapassámos esta conversa do anonimato? as ideias e os discursos (desde que não sejam mal educados) não valem por si?

Anónimo disse...

É por reacções como esta que Portugal difícilmente sairá da longínqua periferia, uma especíe de Tunis africana do extremo sudeste do contiente europeu!
Como dizia um amigo espanhol na semana semana passada: os portugues sofrem de deficiência crítica, mas são soberbos em maledicência!

Anónimo disse...

Akher tem toda a razão quando diz: "os portugues sofrem de deficiência crítica, mas são soberbos em maledicência!"

Vejam por exemplo o comentário que um outro Akher deixou lá em cima:
"este rosto bronco de um pascácio rural, este campónio mal vestido, de barba rala, colete e chapéu preto braguês, rústico, calças de fazenda ruim, mãos nos bolsos, riso alvar, espécie de resignado Sancho Pança sem Quixote.( como lhe chamava a minha mamma, para desespero do meu pai que o idolatrava). Este protótipo nacional de uma ingenuidade lorpa que se limita a um mero papel passivo de pagador de impostos, suando, trabalhando, dormindo, rezando e soltando os vivas necessários aos que vivem à custa dele...."

Vá lá enrabar-se com o seu amigo espanhol e dexe-nos em paz.

Anónimo disse...

Para o anónimo das 7.13,
Sugiro-lhe um bom dicionário para discernir a crítica da maledicência e, já agora, da ofensa! (gratuita)
Mais: não esqueça que o Zé Povinho foi criado para criticar a monarquia - constitucional. Como vê, não fui eu quem o inventou!
Apenas disse e repito que o Zé representa o país Real, a personificação do modo-de-ser-nacional, e que você, com a única frase que foi capaz de construir, fez o favor de ilustrar.

Anónimo disse...

akher
Você é presunçoso, arrogante e tem a mania que sabe muito. É por isso que não consegue ver o elementar. É daquele tipo de gente que envergonharia o nosso povo, não fosse ele tão complacente e bom. Gente tão simples como a nossa consegue ver muito mais longe do que alguém tão supostamente conhecedor e erudito. Bem feito, seu ignorante, toda a vida que viveu até agora não lhe ensinou nada, não lhe serviu de nada. Uma perda de tempo completa. Vá, desande, o seu amigo espanhol espera-o ansiosamente.

Anónimo disse...

eheheehehhehe
o Dragoscópio é o maior BOI. há mais... mas este é o que rula!

Anónimo disse...

Ié esbroda, o Dragon é que rula!
Hehehe!

Anónimo disse...

Que é como que diz:

eheheh!

Anónimo disse...

Parabens Dragão. Gostei...

FCS disse...

Bravo. Tremendo texto! Até lhe senti as asas roçando por dentro da alma.
(Onde está o mar e quando é a hora?)