quinta-feira, setembro 30, 2004

A Turba

A turba acorre ao infanticídio como converge para qualquer desastre na auto-estrada. Ao agitado, ávido perpétuo, convoca-o a contemplação voluptuosa da desgraça, excita-o a chafurdice na miséria alheia. Convence-se que é seu dever postar-se ali de plantão, de basbaque, à coca de pormenores escabrosos, de tripas e postas, que o façam repugnar e insurgir-se muito, inflamar-se e consumir-se por combustão espontânea. Aproveita para jactar aquilo que não tem: coragem e, muito menos, compaixão. Anseia por execrar um qualquer mais execrável que ele – um desqualificado infame que, no seu opróbrio vertiginoso, a faça, por momentos, guindar-se aos píncaros da tribuna e da sobranceria. Lá bem no fundo, turvamente, pressente que a lotaria do destino escolheu o outro como o poderia ter escolhido a ele. Que gostaria agora de massacrar o ignóbil arguido tal qual, mergulhado na ratoeira das circunstâncias e da desalmação, poderia também ter feito sabe Deus o quê à criancinha tragada pelo mistério e esquartejada pela boataria. Isto que o irmana é, intimamente, também aquilo que o indigna, que o pôe fora de si, a bramar e a cuspir ao vento, para se expurgar de toda a conivência, ou pior: de toda a comunhão. Por isso, numa velada exasperança, compensa essa empatia visceral com uma antipatia aparente, exagerada. Urra e descabela-se, num furor desengonçado e fictício. Vocifera à passagem das câmaras. Pormenor, aliás, sintomático e revelador: Mal se sente focado, ou meramente em plano de fundo, desata no folclore de carpideira a soldo, de possesso por encomenda, e redobra nos bramidos, nos guinchos, nas injúrias e ameaças ao veículo que passa. É o eterno figurante que almeja tornar-se protagonista. Exibe-se em espalhafatos de gorila zangado, ou, sendo fémea, de saguim estrídulo. No resto do tempo rumina, opina, pasta e fala ao telemóvel. Transmite relatórios in loco, manda SMSs aos amigos que, com muita pena sua, não poderam vir. Imita, à sua pequena escala, o jornalista sobreactivo (minto: o jornalista é que o imita a ele; o jornalista é que é, cada vez mais, um labrego armado com um microfone e uma câmara de filmar). Mas, sobretudo, julga, acusa e condena. Animam-no ímpetos de verdugo, de magarefe justiceiro, de facínora santo e redentor. Tanto quando espreitar, quer espezinhar, cuspir, vituperar, para se sentir acima, para sacudir de si a mancha, todo e qualquer vínculo que o possa indiciar ou aparentar à abominação. Despe-se de qualquer familiaridade ou comunidade com ela, e vai queimar a roupa no alto dum salgueiro, como, diz a lenda, fazem os lobisomens para esconjurarem o fado.
Debalde. Pior mesmo que nascer sem dinheiro, no mundo de hoje, é nascer sem alma. Nesse aspecto soberano, o mundo de hoje, afinal, não se distingue do mundo de sempre.

Entretanto, os media comandam a assuada, fazem de picadores na arena. O boato amplificado e mega-repetido para toda a paróquia traveste-se de notícia. Os doutores da informação, pivôs de serviço, levam o diz-que-disse a todo o país e às comunidades no estrangeiro. Até Angola e Moçambique ficam a saber. Para isso tiraram o curso, os doutores. Para bradar a toda a parte, com engenho e arte. Os repórteres no terreno, esses, alimentam a caldeira, catalizam e dinamizam a histeria, chafurdam e gargarejam mais que todos. Guiados por batedores locais, espreitam os polícias que, por sua vez, aproveitam para se dar ares misteriosos. Repórteres e polícias espiam-se, competem, disputam a titularidade na investigação. Alguns populares mais expeditos também. Mas são os repórteres quem lidera o arraial. Registam e transmitem todo e qualquer murmúrio ou desabafo. Impedidos de interrogarem pessoalmente os suspeitos, de espremê-los até á última gota, vingam-se e interrogam toda a restante família e quem quer que lhe apareça à frente. Sabedora deste vórtice colector, a população acorre a prestar declarações, a dizer de sua justiça, a vazar os seus palpites. Mas desengane-se quem pensa que são só os mamíferos lá do sítio e arrabaldes. Não, adicionem-lhes excursões de terras longínquas, espontâneos de toda a espécie, mirones peregrinos em romaria e, por todo o país, à hora do telejornal, do Director da Judiciária ao Ministro, passando pelo Cardeal patriarca, não há quem não queira dar uma palavrinha, declarar, meter colherada. Rebentam análises em todas as praias. Como um buraco negro, o écran tudo absorve e desdobra numa dimensão paralela. A turba no terreno prolonga-se e multiplica-se, através duma rede de canais e tentáculos, na turba no sofá. Não são só os da beira da estrada que vociferam e vituperam o assassino que passa: são também os domésticos, à distância, nas salas de jantar, aos rosnidos, clamores e juras por sangue redentor, por retaliação imediata, demolidora, peremptória. Não são só os observadores atentos no terreno que reparam, perspicaz e argutamente, que o fulano alegadamente malvado, tio da vítima, não muda de camisa há três dias; é também a chusma domiciliada a contra-gosto, que corrobora e disseca. Não tarda muito e dissertarão, todos eles, eruditos, sobre a marca, etiqueta e teor em fibra da mesma. Entra-se nos domínios da decifração de augúrios.
Há que reconhecê-lo: O linchamento televisivo –como as execuções na praça pública, do antanho – une definitivamente as alminhas numa comunhão nacional. O fenómeno só encontrará talvez paralelo na fraternidade que acompanha o golo, em casa e no estádio, em jogos decisivos da selecção.
Agora imaginem o quanto não vale todo este pagode em ponto de rebuçado, neste estado fértil da pasta encefálica, para efeito de injecções publicitárias?!...Quanto não cobram os bandarilheiros da TVI (ou da SIC, ou da RTP) para colocarem o toiro bem a jeito dos senhores cavaleiros –da Nokia, Sagres, GM, etc – plantarem os seus rebordados ferros?!...
Têm sido declamados vários cenários, todos eles repugnantes. Alguns, do mais repugnante que possa imaginar-se. Em todo o caso, nenhum, nem os piores, tão repugnantes quanto o proxenetismo do asqueroso em que mergulhou a comunicação social deste país. Contemplá-la no seu chafurdar permanente, diário, insaciável, mais que transportar-nos à náusea garantida, confere à palavra "necrofagia" toda uma nova e ainda mais deprimente dimensão. Uma necrofagia espectacular...Exibicionista.

2 comentários:

zazie disse...

“Pior mesmo que nascer sem dinheiro, no mundo de hoje, é nascer sem alma”.Sabes que eu não encontro o menor progresso no que quer que seja entre este espectáculo e a assistência ao enforcamento público noutras épocas.

E se me perguntares se é o espectáculo que faz a barbárie também não te sei responder.

A lei moderna existe para evitar a barbárie e a justiça se acontece é por acaso. A cobardia tornou-se a face do civismo e a barbárie adocicada transitou para o espectáculo televisivo. Ninguém corre riscos e se for preciso um justiceiro, ainda temos o cinema.

Já tenho mais dúvidas quanto à catalogação dos que se profissionalizaram a cuidar destes casos nas gavetas da burocracia.
Geralmente são unânimes em reconhecer a impotência da prevenção por qualquer meio legal e que o que fazem ou podem fazer de nada serve.

Conclusão que não os impede de levar o dinheiro ao fim do mês, mesmo naqueles em que não há espectáculo

Por isso não sei se pior do que nascer sem alma é perdê-la em exercício.

josé disse...

Penso às vezes se a senhora Judite ou a senhora Alberta ou o senhor Santos, doutorados em comunicação, pais de filhos, professores de comunicação, têm consciência do caminho que andam a percorrer...
A audiência vale tudo? E a RTP precisa de audiência como as outras?! Na TVI e SIC, o trogloditismo jornalístico ainda se compreende. Os gajos têm casas e carros para pagar; viagens a fazer e estadão a respeitar. Filhos em colégios caros...etc etc
Lembro-me bem, em meados dos 80 o palerma do Moniz andava de R5...