«Lourenço Marques, 22 de Julho (de 1966) - Cidade imaginada em grande, planeada em grande, executada em grande. Largueza, vastidão, arrojo, eis o que me impressiona em Lourenço Marques. Ao mesmo tempo, tem zonas de encanto, ou de nobreza, ou de recolhimento. Menos portuguesa do que Luanda, por influência da África do Sul, mas ainda assim muito portuguesa. Esbarra-se a cada passo com as sombras de Mouzinho, António Enes, Caldas Xavier, Paiva Couceiro, outros ainda. A Polana, a Ponta Vermelha, tem sortilégio. Somos grandes, dinâmicos, visionários e bravos no Ultramar - e somos pequenos, provincianos de pacotilha nos cafés, nas tertúlias literário-políticas, nas confabulações dos salões pequeno-burgueses e superiormente intelectuais de Lisboa. Quando se vê a pujança, a força portuguesa em Lourenço Marques, na Beira, ou em Luanda, aperta-se de mágoa o coração ao pensar no que se vive em Lisboa, ao reflectir nas preocupações de Lisboa, nos dramas morais de Lisboa. Em África, os portugueses abrem, rasgam, iniciam, levantam, constroem, produzem, rebentam ou triunfam, e quase sempre triunfam - e mandam para as urtigas do inferno as Nações Unidas e os sagrados princípios dos outros. Em Lisboa, debate-se, discute-se, duvida-se, hesita-se - e parece que há quem passe noites de insónia a ponderar se o facto de Portugal não cumprir uma resolução da ONU prejudica a humanidade, ou a tremer como vara verde perante o desprazer americano, ou britânico, ou afro-asiático. O que assombra é que os nossos intelectuais, ou os nossos altruístas, ou os nossos sujeitos de grandes princípios, não vêem que as potências inventam os princípios que servem os seus interesses e que se riem da humanidade, e do progresso e liberdade dos negros, e dos direitos humanos dos outros, etc. Há cegueira até mais não poder. Aqui em Lourenço Marques, como em Luanda, compreende-se bem isto: o que está em causa não é saber se os territórios são ou não independentes: o que está em causa é saber se os territórios se desenvolvem com Portugal para poderem ser realmente independentes dentro de 50 ou 70 anos, ou se são escravizados e explorados por interesses imperiais de modo a que não possam ser efectivamente independentes em futuro previsível, se é que alguma vez o poderiam ser, subjugados como ficariam por um neo-colonialismo brutal. Mas em Lisboa o dilema é outro: saber se Portugal cumpre rigorosamente todas as vírgulas de uma resolução da ONU, que as grandes potências mandaram a organização votar. E não saímos disto.»
- Franco Nogueira, "Um Político confessa-se (Diário: 1960-1968)"
3 comentários:
Pois é. E hoje continua a ser assim com outras "vestes". Os que ficam lamentam-se; os que emigram parece que resgatam a alma tuga perdida...
A questão de fundo, que o mp-s ainda não formulou é apenas outra-
a grande fantasia do "ser humano universal" dos direitos do Homem. Todos sabemos que não existe mas todos fingimos que sim...
O iluminismo inventou esta patranha bonita.
Estou a começar a gostar deste sr. Franco Nogueira.
Na antiga Lourenço Marques antes da independência qualquer pescador artesanal vivia do pescado que apanhava somente com uma jangada e que vendia porta a porta. Depois da independência os grandes pesqueiros com aspirador dos países amigos tornaram isso impossível. Será que deram emprego ao pescador artesanal?
Enviar um comentário