sábado, outubro 07, 2006

Às escuras, na corda bamba, sobre o abismo...



Em Junho de 1958, Céline deu a entrevista que se segue -mais monólogo que entrevista, aliás - a Georges Cazal e três colegas deste.

- Somos alunos da E.S.C.E.C. [Escola Superior das CIências Económicas e Sociais]. Lidamos sobretudo com o mundo dos negócios...
- É essencialmente prático, previne as pessoas em todos os sentidos.Posso gabar-me de pertencer às pessoas práticas. É um vício da Civilização Ocidental. O rei dos fura-bichas é um homem prático. Mas vocês querem falar de letras? Não tenho coisas muito interessantes para vos dizer. O mundo está marcado pela Enciclopédia. Têm-se ideias. Algumas. Mandam-se mensagens. A minha posição não é boa, vou-me encarquilhando com o nariz em cima do que me interessa. Mas isso é chinês. Não acredito que apaixone ninguém, é o mesmo que fazer lavores.E tanto se pode beber num copo de vidro vulgar como num copo de cristal de rocha. Passo então os anos a fazer coisas muito delicadas.Sob o ponto de vista prático é inútil. A minha tarefa é fazer vivido emotivo, meter a emoção na linguagem escrita.
Para ser franco, a forma como os outros escrevem não me agrada.Encontrei uma maneira diferente de estilizar, que me satisfaz... Para fundamentar as minhas más razões: os contemporâneos, talentosos colegas, escrevem à maneira de Paul Bourget, de Anatole France, que por sua vez copiava Voltaire. Bem ensinada, esta boa maneira de escrever é muito apreciável se for bem feita. Para nos dar notícia de uma certa situação, de uma certa forma de tratar acontecimentos, quer seja jornalismo, quer mundanismos, está bem. Mas não é emotiva, é seca. Há dois erros graves: o da novidade a todo o custo, e o do racionalismo. Novidade a todo o custo: ...é espantoso... é um novo Balzac, um novo Victor Hugo... prodigioso... Maupassant foi ultrapassado... É falso! E cheira a mentira. Porquê? Ao homem não é consentida muita coisa nova. Muito pouca. A natureza não nos dotou para isso... só para pequenas alterações, nada por aí além. No coração de uma vida isto é enorme. Brassens faz uma nova canção e percebe-se muito bem que aquilo é velho. Na Ásia, o prático era sempre rejeitado como vulgar. Mas nós, nós queremos que tudo seja prático e artificial. A arte é-nos hostil. Um palco de teatro é prático, as mulheres por causa do traseiro, os homens pela sua figura. Um palco está cheio de gente prática que nos enjoa. Dizia Goethe de Mne de Stael: Ela representa o que existe de mais francês. Nunca tomará o falso pelo verdadeiro. Mas não compreenderá todo o verdadeiro. Com o Francês sucede qualquer coisa parecida: é astuto, não se deixa enganar, critica mas passa ao lado. Nem todos os dias aparece um Lavoisier, um Becquerel... a publicidade substitui tudo.
Veja-se o teatro chinês: é renda. Fazem-se as mesmas coisas durante dois mil anos. De trezentos em trezentos anos modifica-se uma coisa qualquer. A minha mãe consertava rendas antigas. Para se fazer isso o tempo não pode contar, o dinheiro não pode contar. A renda já não dá... Ninguém a quer... Não paga. O romance também já não paga... As pessoas não estão feitas para ele. E as que não estão feitas para, coligam-se e dizem: vamos ganhar dinheiro. As que não estão feitas para, transformam-se em académicos, fazem uma porção de coisas e tornam-se tiranas. São más. As que não estão feitas para mantêm-se na mó de cima, têm tudo por elas porque possuem a forma e o número. Tal como dizia Péguy, para um homenzinho que fabrica banalidades nada é mais feroz do que os inteligentes. São críticos abomináveis.
O castigo é precisarmos de dinheiro, isso é prático. Quando não precisamos de ninguém, as coisas resolvem-se. Se precisarmos de dinheiro, correm mal. Se formos ricos é uma felicidade; de outro modo, as pessoas inteligentes fazem-nos guerra e morremos. Vi-me enredado em histórias e paguei: o que é gratuito não vale nada. A morte é que inspira tudo. Acho que temos de pagar um preço pesado, o máximo, e assim mesmo conseguir escapar. Sem isto, nada feito. Há que andar numa corda bamba sobre o abismo, às escuras, e lá em baixo está tudo cheio de monstros. Voltaire arriscava muito, sem parar. Rabelais também. Quando nos escorraçam é uma alegria, uma condição a bem dizer essencial, mas é preciso a criatura ter possibilidades técnicas, muito trabalho, logo uma feroz assiduidade... quer isto dizer não vivermos. No mundo actual estamos de tal forma documentados, que não vejo muito escritores aprenderem qualquer coisa no mundo. Antigamente aprendia-se o adultério com a Madame Bovary, o médico de aldeia com Balzac. Agora, interessante só o estilo. É como a fotografia: já se fotografou tanto, que não precisamos de pintura descritiva.
No romance actual foge-se de todos os esforços. O escritor ou é político, ou faz-se rodear de publicidade. Todos os anos aparecem oitocentos mil girinos, quatrocentos mil de cada sexo. Oitoentos mil jovens que chegam à vida. Excitam-se a ver qual é o melhor, mas entretanto chegam mais oitocentos mil. Há uma idade da espontaneidade; mas é uma idade ocupada pela educação, pelo bacharelato. Estes jovens socumbem à caquexia moral ou ao comércio. Os outros agarram-se ao que lhes dão: Sartre, o Sr. Camus, os Goncourt, os mestres do pensamento... Comem, bebem, enfardam muito bem, e isto substitui tudo.
Fazem music-hall, streap-tease, o que não quer dizer que sejam entendidos no assunto. Olho todos estes prazeres de perto... Estes streap-teases. Vê-se bem que não percebem absolutamente nada do assunto. Falo sob o ponto de vista veterinário, que conheço um pouco. Às senhoras, em geral dou-lhes 3 em 20, é uma coisa podre de defeitos, são coxas em lamentável estado... Em geral não passam de 4, 5, 6 em 20, e mesmo assim é preciso ir aos cursos de dança. Nunca abandonei os cursos de dança. Disso percebo eu. Conheço aquilo que dura. A flor não dura cinquenta anos, e digo a mim mesmo que tudo aquilo não passa de espinheiro-alvar.
Para se obrigar a comprar, há que tornar as pessoas optimistas... comprem um carro novo... um novo recheio de casa, assinem letras. Optimismo da compra. O tipo deprimido, ou cínico, ou céptico não pode comprar. Estarmo-nos a borrifar para as dívidas é que é optimismo...
E então, de "formidável" em "espantoso", em "assombroso", chega-se a uma prosápia sem nome. Os outros oitocentos mil girinos vão cobrir o lanço. De superlativo em superlativo chegamos a um bando de jovens que vão de vento em popa e fazem o comércio andar para a frente. Dizê-lo não é muito cómodo, permite-nos fazer um balanço muito severo e muito frio da época em que vivemos.
Os Americanos não encontraram nada, dependem da civilização romana. O inglês é um francês mal pronunciado. Noventa por cento das suas palavras vêm do francês. É tudo europeu. O Francês não fala a língua que convém à sua força. Vê-se obrigado a pedir a sua soberania emprestada à América ou à Rússia. DE nada neste mundo ele pode ter a iniciativa, para com uma palavra, com um telefonema. Veleidades... a higiene dá cabo delas. Todas as guerras terminaram com epidemias, a de 14-18 inclusivé. Fazem-se agora guerras intermináveis, toda a gente está vacinada, já não há epidemias. Por esse lado nada podemos contar, o que deixa tudo alterado. Durante a última guerra, médicos alemães muito altamente colocados iam até Lisboa para ver se no caminho havia epidemias. Mas já não estava nunca em causa a varíola, as bexigas. Tinha-se feito o que era possível... na de 14-18. Franchet d'Esperey teria chegado a Berlin se não apanhasse varíola nos Balcãs...
- Para a língua francesa talvez seja uma oportunidade recusar a civilização moderna...
- Não, recusar o mundo moderno não é uma opoprtunidade para o francês, que é pequeno de mais. É teimoso como um burro, mas está isolado. O Departamento dos Deux-Sèvres a lutar contra o Parlamento. O inglês domina tudo. Como é uma língua de negócios, há interesse em utilizá-la. Em todo o mundo se aprende inglês. Mo mar: uma bandeira francesa para dez inglesas.
Não há um notário, um oficial de marinha que não tenha um texto na gaveta. Não escrevem pior do que os outros. A França é um país literário, mas nem por isso se chega longe: tiram-se três mil exemplares e vendem-se trezentos. Só se vende o que é muito popular, a capelista é que vende livros, fascículos da Vierge et Rousse, do Satyre et Malfaisant. Madame Delly: 160 milexemplares por ano. Leitura comestível, exercícios... O mundo anda muito ocupado, antigamente com as Igrejas, agora com a política. Este país perde força, irradiação. Depois de 14-18, prestígio da vitória...mas agora... nadinha. Fugimos do esforço. Prestígio das Letras, das Ciências, das Artes... Isso não existe. Só existe o prestígio da guerra que se acaba de ganhar. O que conta é a força. A minha conclusão desiludida... há que refundir completamente a moralidade das pessoas. Um golpe à Savarola. Eu cá faço o que posso para sobreviver... cometi a loucura de me levantar contra a guerra. Santo Deus, que mal me quiseram. Que mal ainda me querem! É uma loucura... juventude persistente.
Há cinco ou seis autores com tiragens maiores do que as outras e de quem se não fala, que nunca têm uma linha de crítica. Delly: sem publicidade, além da que lhe faz a criada ou a patroa. Gente de massa e sexo. No seu tempo, o Montaigne só era lido por alguns. Molière não escrevia por dinheiro, mas para a corte. Villon escrevia para a polícia, era um bufo. O filho de um grande comerciante tem hipóteses na literatura. Muito poucos mantêm o gosto pela procura do estético. Seis mil a oito mil pessoas interessam-se por uma peça moderna. Dullin... fabrico um bom produto, mas se for comprado apenas por trezentas pessoas, fecho a loja. Não se trata forçosamente de hipocrisia: Molière... Luís XIV... mas é necessário dinheiro. E quando na base está o dinheiro, não há sinceridade. Zola tinha a política para se safar. Vallès safou-se assim, mas pagou caro.
Viagens... grandes viajantes... nada se aprende em tais lugares. Vão antes às prisões, se quiserem aprender alguma coisa. Eu cá sdesliguei-me do que é graxa, e estou tranquilo. Não vêm pedir-me a opinião. Tive essa coragem. Desde que haja representações, aplausos, é horrível. Proust: notável mas vivia numa família de médicos. Observava bem as pessoas. Bom, mas estilo pesado! Arquitectura pesada. Poderoso escritor, pagava: snob, mundno... Joyce: observação proustiana, naturalista, pontilhista, mas menos interessante do que Proust. Além disso é um inglês! Pierre Louys: um autor que se agarrava ao estilo, mas que se dava a trabalheiras por histórias que não valiam a pena.
- O que pensa do jazz?
- O negro é antimúsico, é ritmado. Vivi entre os antropófagos...uma plantação de cacau. Para um negro, cantar é artificial. O que ele gosta é de batuque...o ritmo. Com os nossos sons irritamo-los. Luta dos negros contra a música dos brancos. Os brancos apanharam o ritmo, abandonaram a melodia. Por volta de 1920-25, os negros tramaram a nossa música. Os Espanhóis também têm ritmo. As variantes do ritmo não nos acodem. Só cantamos através de padres, o gregoriano. Somos mais práticos do que os Americanos, que são mais provincianos do que nós... romantismo... gratuitidade... que entre nós não há. O Francês é cínico: pancada alta, supra, rico, etc. Mas um viúvo que faz dois filhos debaixo de um camião. Diversidade... contraste. A América é arquiprovinciana, costumes muito severos, interessa-se pelo Império, pelo Consulado mais do que nós. Americanos muito saudáveis, encontram-se lá de todo o género: homens de negócios, filatelistas, pederastas, maníacos, amadores de dólares, presbíteros. Conosco há os jesuítas. O humor é a boa educação do desespero. Na América não há mais profundidade no humor do que entre nós. Shakespeare... um corneilliano um tanto chato. Profundamente triste.
- Anda a preparar alguma coisa?
- Tenho uma reputação de porco solidamente firmada, tenho de aproveitar. Se ela conseguir dar-me com que comprar massas alimentícias e batats... Jogo à pela com bem mais modéstia do que esse jogador do Malherbe. Um contratempo aos 64 anos: nenhuma reforma... saí da escola primária, não tive liceu...passei o bacharelato só com manuais. Cortava com isto pela raiz se tivesse uma reforma. Daria assim prazer a toda a gente. Sou inválido da guerra a 75%. Não tenho necessidades,não como nada... desejem-me a reforma... 65 anos é a ponta da pirâmide das idades... Cervantes aos 80... Sófocles aos 90...
Prefiro que não me tirem fotografias, nesse ponto sou maometano. Uma fotografia é uma pedra tumular... boa para as mulheres bonitas... A mimha mãe está enterrada no Père-Lachaise, não se atreveram a pôr lá o nome dela com medo de que fossem sujá-lo.»

(Trad. de Alberto Nunes Sampaio)

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Um nota final...
Jacques Darribehaude disse de Céline o seguinte: "Conheci-o no inverno de 59-60, e voltei a vê-lo por diversas vezes na sua casa de Meudon. (...) Voltava as costas ao mundo, mas a sua curiosidade mantinha-se inesgotável; nada lhe escapava. Conservava uma amargura quase resignada em relação às suas provações, e não era possível vê-lo, ouvi-lo, sem emoção. (...) Durante a conversa podia mostrar-se um mímico irresitivelmente cómico, de uma aguda ferocidade quando imitava os mundanos, os snobs. Tudo quanto era falso, afectado, empolado, pretensioso, abria-lhe uma veia fantástica e extraordinariamente oral, que utilizava para demolir."

Falta apenas acrescentar que esta aversão de Céline ao falso, ao afectado, ao empolado e pretencioso, ainda hoje - e tipicamente - é recíproca.

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