domingo, outubro 01, 2006

Por uma filosofia dos humores

Foi com Schopenhauer que eu, rapaz, me interessei pela filosofia. Sosseguem, não passou de uma paixão meramente platónica, já que ela, altiva e deslumbrante deidade, nunca se interessou -nem poderia - por um badameco de tão baixa extracção. Mas eu estava naquela época da vida em que nos interessamos por senhoras mais velhas e, com o destemor próprio dos imbecis, predispus-me às mais ridículas fantasias. O culpado, repito, foi Sua Excelência, Artur Schopenhauer, o pessimismo por antonomásia, mestre de Nietzsche e um dos maiores misóginos que o mundo já conheceu. Não obstante, as nossas feministas de turno deviam ler Shopenhauer. Deviam lê-lo todos os dias. O ideal mesmo seria que se criassem salas de contra-chuto, onde, para as ditas tais, a "Metafísica do Amor" funcionaria como droga de substituição. Só tinham a ganhar. Quem sabe até se essa terapia de choque não conseguiria o milagre espantoso de resgatá-las aos delírios tansos em que vegetam.
Mas era de Schopenhauer que eu vinha falar. E dos seus humores. Os humores, ninguém me convence do contrário, são os testículos dum filósofo. Um filósofo sem humores é um eunuco da inteligência. Ora, o grande filósofo da Vontade não detestava apenas as mulheres (abominava-as racionalmente, subentenda-se, já que fisicamente não desgostava nada de cair em contradição). Não; cultivava também outros ódios mais edificantes, mas não menos enérgicos. Hegel, por exemplo. Schopenhauer detestava Hegel, por variadíssimas razões, mas sempre com todas as suas forças; e eu também. Minto: com as dele todas e também com as minhas. Isto, porque, convém referi-lo, comecei a detestar Hegel com Schopenhauer - por solidariedade discente, digamos assim -, e depois aprendi a detestá-lo sózinho. Quer dizer, detestei-o primeiro sem precisar de lê-lo, por uma questão de fé, e continuei depois a detestá-lo, ainda com mais fervor, quando, em malfadada hora, comecei a lê-lo. Fui para Hegel cheio de preconceitos? O mais possível, todos de quantos fui capaz. Ainda hoje estou convencido, e ninguém me faz arredar pé daqui, que, além de constituir uma germanização de Plotino para uso na caserna, Hegel é, juntamente com Descartes, Comte e Husserl, já não falando de Sartre e os Analíticos todos duma ponta à outra, o filósofo mais detestável que alguma vez existiu. O que o mundo não teria lucrado se o tivessem estrangulado logo à nascença!... Escusam de alvitrar Santo Agostinho ou Marx porque aí, nesses deploráveis casos, não estamos ao nível da filosofia mas da totemística: pensamento mágico espetado algures na mitomania que irmana a tribo e a seita. De Leo Strauss, então, a bem da vossa longevidade, é melhor nem falarmos: tamanha quantidade de substância pastosa e emissora de elevado teor nauseabundo só se encontra nas imediações das explorações agro-pecuárias. Ou na "Ribeira dos Milagres" em época de descargas. Mas lá estou eu a transviar-me de novo...
De volta à terra. Outro grande mérito de Schopenhauer foi não ter sido um mero roedor de bibliotecas (como Borges, por exemplo), mas, como lhe competia e compete a qualquer filósofo que se preze, um ruminador de mundo. Não estranha pois que dormisse com uma pistola carregada à cabeceira, jamais confiando o pescoço -que servia de conveniente pedestal à prodigiosa cabeça - à navalha de nenhum barbeiro. Preceito que eu, nas minhas modestas posses, procuro seguir à risca: qualquer indivíduo da minha própria espécie que se aproxime de mim armado de navalha a menos de três metros, em podendo, abato-o a tiro. Cautela elementar, esta, que, estou certo, ninguém ousará criticar-me.
Do Homem disse Schopenhauer muitas coisas, quase sempre reais, que é como quem diz: pouco abonatórias. Quando diagnosticou que ele, o homem, lato sensu, era "um animal metafísico", julgo que estava a ser justo e pertinente. Perspicaz, inclusivé. Quando acrecentou que "quanto menos inteligente ele é, menos misteriosa a existência lhe parece", além de certeiro, estava a tirar o retrato por antecipação à imbecilização cavalgante do nosso tempo. No que, como noutras coisas, antecipou Nietzsche.
Quando, finalmente, lapidou que "poucos são dignos de inveja, a maior parte é apenas digna de lástima", quase conseguia ser absolutamente verdadeiro. Faltou-lhe apenas aquela nesga última do desassombro abissal e trágico da sabedoria grega. A mesma que Ésquilo e Sófocles proferiram duma forma onde a arte espelha a eternidade: ninguém é digno de inveja; todos, vis e absurdos mortais, somos dignos de piedade.
E passageiros do terror.

7 comentários:

Anónimo disse...

E você, caro Dragão, é misógeno tal qual Schopenhauer ?

Devo confessar que adoro a embalagem, mas detesto o conteúdo. :O)

Anónimo disse...

E você, caro Dragão, é misógino tal qual Schopenhauer ?

Devo confessar que adoro a "embalagem", mas detesto o "conteúdo". :O)

dragão disse...

Nesse aspecto eu dissidi do mestre: sou mais filógino que misógino.
Gosto de raridades.

zazie disse...

Tu também andas a treinar para sábio ";O)

Excelente! mete os taberneiros na ordem!

O problema é que a praga que veio de Hegel não se limitou a ficar lá no seu canto. Ainda anda para aí a minar muito mais coisas.

dragão disse...

Do Hegel e do Locke, nunca esqueças!... :O)

Só sei que nada sei. Quantoao resto, só falo na presença do meu advogado. :O)

E se mataram Deus, é melhor investigar o mordomo.

Anónimo disse...

Deste precioso texto eu só fixei aquela parte em que o dito dormia com a pistola carregada!
Não haja duvida que estou muito aquem da...sei lá, sabedoria!
Mas gosto deste tasco...sempre à espera de mais uma arma carregada!

Legionário

Anónimo disse...

Não gostar de filosofia inglesa (Locke, Hume, Berkeley e outros merdas, como os analíticos que agora estão na moda), ainda vá, mas o Husserl e o Hegel???