segunda-feira, janeiro 19, 2015

Viagem ao princípio da Noite

A exploração do filão religioso pelo leviatã global não se resume apenas a lançar cristãos contra muçulmanos. Interessa também fomentar todo o tipo de conflitos religiosos: católicos contra ortodoxos (Croacia, Sérvia, Ucrânia); sunitas contra xiitas (Iraque, Síria, Líbano), muçulmanos contra hindus (Paquistão, Índia),  muçulmanos contra budistas (Tailãndia),  etc
Quando digo "leviatã global" significo o aparelho de choque da plutocracia global. O seu modus operandi, derivado da revolução perpétua (num neo-trotskismo agora ultra-pasteurizado) é  a "guerra perpétua". Como,. de resto, estipulava Huntington: "As guerras civilizacionais são intermitentes; os conflitos civilizacionais são intermináveis.».

Por falar em guerra perpétua, veio-ma à memória Kant na sua "Paz Perpétua", de 1795. Para a qual , o filósofo de Konigsberg, considerava 6 artigos preliminares, a saber
1. «Não deve considerar-se como válido nenhum tratado de paz que se tenha feito com a reserva secreta de elementos para uma guerra futura»
2. «Nenhum Estado independente (grande ou pequeno, aqui tanto faz) poderá ser adquirido por outro mediante herança, troca, compra ou doacção.»
3. «Os exércitos permanentes (miles perpetuus) devem, com o tempo, desaparecer totalmente.»
4.«Não se devem emitir dívidas públicas em relação com os assuntos de política exterior.»
5. «Nenhum Estado deve imiscuir-se pela força na constituição e no governo de outro Estado.»
6. « Nenhum Estado em guerra com outro deve permitir tais hostilidades que tornem impossível a confiança mútua na paz futura, como, por exemplo, o emprego no outro estado de assassinos, envenenadores, a rotura da capitulação, a instigação à traição, etc.

Não vou, naturalmente, dilucidar da bondade ou perversidade deste projecto "filosófico" de Kant. Ele chama-lhe isso mesmo - "um projecto filosófico", e não um "projecto político", o que não deixa de ser, por um lado, curioso, e por outro, significativo. Também me parecem pacíficas as influências iluministas no cosmopolitanismo kantiano, mas o ponto agora é outro, embora tendo esse bem presente. Gostaria apenas de destacar o seguinte: O projecto político que impera hoje no mundo, e que, com grande pompa e circunstância, se auto-arvora herdeiro dilecto do iluminismo, guardião dos seus valores e paladino do "estado de direito", está rigorosamente nos antípodas do projecto kantiano. Para a "guerra perpétua" poderiam até servir os 6 artigos de Kant, desde que reescritos pela liminar negativa, isto é, bastava pô-los ao contrário. Não vos parece, no mínimo, estranho? Kant era um optimista (confessa-se até admirador de Rousseuau enquanto estilista literário), pelo que tendia para a utopice e faltava-lhe, em larga medida, o sentido da realidade? Longe de mim estar pr'aqui a defender Kant. Mas querem ver como ele não era parvo de todo? Ora oiçam:

«Para não se confundir a constituição republicana com a democrática (como costuma acontecer) é preciso observar-se o seguinte. As formas de um Estado (civitas) podem classificar-se segundo a diferença das pessoas que possuem o supremo poder do Estado, ou segundo o modo de governar o povo, seja quem for o seu governante; a primeira chama-se efectivamente a forma da soberania (forma imperii) e só há três formas possíveis, a saber, a soberania é possuída por um só, ou por alguns que entre si se religam, ou por todos conjuntamente formando a sociedade civil (respectivamente autocracia, aristocracia e democracia; poder do príncipe, da nobreza e do povo). A segunda é a forma de governo (forma regiminis) e refere-se ao modo, baseado na constituição (no acto de vontade geral pela qual a massa se torna um povo), como o Estado faz uso da plenitude do seu poder; neste sentido, a constituição é ou republicana ou despótica. O republicanismo é o princípio político da separação do poder executivo (governo) do legislativo; o despotismo é o princípio da execução/ arbitrária pelo Estado de leis que ele a si mesmo deu, por conseguinte, a vontade pública é manejada pelo governante como sua vontade privada. - Das três formas de Estado, a democracia é, no sentido próprio da palavra, necessariamente um despotismo, porque funda um poder executivo em que todos decidem sobre e, em todo o caso, também contra um (que, por conseguinte, não dá o seu consentimento), portanto, todos, sem no entanto serem todos, decidem - o que é uma contradição da vontade geral consigo mesmo e com a liberdade.»

Questãozinha capital: O que é que nós temos tido, aqui em Portugal (mas no resto do mundo ocidental não será muito diferente), senão um despotismo a prazo, no decurso do qual tiranetes quadrianuais produzem e executam as leis e as políticas que muito bem lhes dá na real gana, sem que a vontade geral (que é suposto estar, segundo os principios iluministas, corporizada numa constituição) seja tida nem achada? Que raio de "estado de Direito" é este onde a separação entre o poder executivo e o legislativo (do judicial nem falo), pura e simplesmente, não existe? Ao primeiro-ministro, obedece o governo e obedece o Parlamento - o tipo escolhe ministros, escolhe deputados e ainda escolhe não sei quantos funcionários de nomeação, entre os quais juízes e procuradores-gerais. Na verdade, uma minoria da população elege-o a ele; depois ele elege quem muito bem entende e lhe apetece. Se tivermos em conta a qualidade dos primeiros-ministros nestes últimos quarenta anos, especialmente da última meia-dúzia, caramba, há algum espanto que o resultado seja a ruína, o descrédito, a desonra, a desagregação moral, social e nacional? E nem é preciso recorrer aos meus princípios (assaz diversos, diga-se), basta convocar os mais elementares princípios iluministas, os tais imaculados e altamente bondoso e progressistas de que toda esta corja se arvora procuradora, curadora e delegada de propaganda médica assistida!... Em bom verdade, servem-lhes de ornamento à retórica e de papel higiénico à prática.

Mais, o velho Kant é ainda mais incriminador quando, num texto de 1783, define o Iluminismo como « a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. (...) A preguiça e a cobardia são as causas por que os homens em tão grande parte, após a natureza os ter há muito libertado do controlo alheio , continuem, no entanto, de boa vontade, menores durante toda a vida; e também por que a outros se torna tão fácil assumirem-se como seus tutores. É tão cómodo ser menor.»

E pronto, não é esta a relação: um primeiro-ministro tutor plenipotenciário quadrianal dum colégio de eleitores/contribuintes/cidadãos menores? Pior que menores: pequeninos, insignificantes, invisíveis, irrelevantes. É este o "iluminismo"? O que os psicopatas islâmicos ameaçam?  

«Não me é forçoso pensar, quando posso simplesmente pagar; outros empreenderão por mim essa tarefa aborrecida.» 
Adivinhem quem disse.  O mesmo que dá um quadro arrepiantemente fidedigno desta nossa relação de menores com os nossos tutores (lembrem-se das razões porque não se podem fazer referendos, das "cedências à demagogia", ao populismo, etc):
«Depois de, primeiro, terem embrutecido os seus animais domésticos e evitado cuidadosamente que estas criaturas pacíficas ousassem dar um passo para fora da carroça em que as encerraram, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça, se tentarem andar sozinhas.»

Não, não é Nietzsche. No estado a que chegámos, basta Kant. E não é exactamente isso que sois para os vossos tutores:: animais domésticos?...


PS: E o que serão os vossos tutores para os tutores deles?...


11 comentários:

Vivendi disse...

Post simplesmente espectacular!
De se tirar o chapéu.

Temos de voltar a Platão e esquecer a seita iluminada.


Ricciardi disse...

E de entre todas as alternativas existentes (não valem aqueles que apenas são possíveis de imaginar), em duas centenas de estados-nação existentes que a historia burilou, qual aquela que melhor servirá, ou que caracteristicas deve ter essa alternativa para cada país?
.
Podemos começar por Portugal?
.
Todas as desvirtudes do sistema actual são comuns aos anteriores regimes.
.
Menos um. O mérito de ascenção à governança. Bem ou mal, um rei, chefe, soba à antiga era posto conquistado por méritos. O mais capaz, esperto, inteligente, corajoso, destemido, forte seria o comandante em chefe. De modo que às vezes uma população precisava de um inteligente e aparecia-lhe um forte. Quando precisava de um forte, aparecia-lhe uma florizinha de estufa. Em abono da verdade várias vezes a bota batia com a perdigota, lá aparecia um forte quando era preciso a força e um inteligente quando tal era imperioso.

Hoje não é bem assim. Hoje temos a certeza que o que nos aparece para a governança é o que consegue enganar melhor. Prometendo e não cumprindo a promessa. É como se antigamente pudesse aparecer um rei franzino a dizer que ia liderar o exercito no campo de batalha ou aparecer um rei idiota a dizer que ia promover a ciencia.
.
Hoje é isso mesmo que acontece. O fraco é eleito por forte e o estúpido por inteligente.
.
Rb

Zé Luís disse...

Até Kant, foda-se, até Kant desmascara isto tudo cheio de iluminados. Mas sabemos já o que foi o século das luzes. Livre? Livra!

mm disse...

manifesto pelo sistema de escolha por sorteio dos deputados para a assembleia da républica

isso sim, era mudar as coisas

José disse...

Elogio de Salazar e Caetano. Objectivamente.
E aplaudo, claro, até certo ponto. Até ao ponto em que aqueles abusaram do poder. Como?

Quando proibiram isto e aquilo com medo de perderem o poder.

Anónimo disse...

Estou a cagar e a comentar ao mesmo tempo com o telemovel. Caganda borra foda-se

Ricciardi disse...

Salazar é uma singularidade. Do tipo Big-Bang.
.
Não é replicável porque a sua ascenção (ao poder, não aos céus) não dependeu do mérito de um sistema organizado e previsivel. Ao contrario da monarquia que nos pode dar alguma segurança nesse capitulo.
.
E assim, enquanto na monarquia podemos ter a certeza (nunca há certezas absolutas vá) que o principe é educado pelos melhores tutores e que estará bem preparado para as funções, já noutros sistemas dependemos das Sortes, não raras vezes do Caos.
.
Até o tal lusomilhões é sistema mais previsivel do que os dois ultimos que tivemos:
No primeiro (estado novo) não é uma lotaria: é mesmo uma puta de uma lotaria. Sai-nos sempre premio elevado, é certo, mas é pouco provável que nos saia um Salazar; é mais provavel que nos saia um Kim Jong Un. Precisamente, porque podemos verificar que existem mais ditadores sanguinários no mundo que ditadores não sanguinários.
No segundo (democracia) a probabilidade de nos sair um crapula é mais elevada do que no sistema do lusomilhões. Porque? porque no lusomilhões não há enganos, nem recursos à simulação, ao passo que na democracia somos engodados para votar naquele que engana melhor. A seleção é de entre os engadores, enquanto que no lusomilhoes é de entre enganadores e pessoas sãs.
.
Rb

dragão disse...

Talvez conmvenha lembrar que Aristóteles definia a Monarquia como uma forma de governo por um, a oligarquia por alguns e a Democracia pela sorte. Porque, efectivamente, na democracia originária, os eleitos eram sorteados entre todos os cidadãos livres da polis. Exceptuavam-se escravos, mulheres e metecos.
Não significava que mulheres e metecos não fossem livres: apenas que não eram elegíveis.

mm disse...

ou como também escreveu Montesquieu

« Le suffrage par le sort est de la nature de la démocratie ; le suffrage par choix est de celle de l’aristocratie. Le sort est une façon d’élire qui n’afflige personne ; il laisse à chaque citoyen une espérance raisonnable de servir sa patrie. »

Duarte Meira disse...

«Quando digo "leviatã global" significo o aparelho de choque da plutocracia global.»

Caro Dragão:

Era menos mau se as questões em jogo tivessem apenas a ver com a velha "plutocracia".

O "princípio da noite" aponta noutra direcção:

"Converging Technologies", "Human Enhancement"; "Directed Evolution": "Engines of Creation"; "Remaking Eden" (para alguns).

dragão disse...

o Eden vai ser uma espécie de condómino fechado global. Imagina-se para quem...