sábado, novembro 10, 2012

Condenados à Desgraça



A juntar à ausência mais completa (e até um tanto embaraçosa) da corrupção entre nós, veio agora a senhora do Banco Alimentar revelar-nos que também a miséria não se avista em parte alguma. Escusam pois os portugueses de porfiar desalmadamente com mais eleições e eleicinhas, votações e votacinhas, sufrágios e naufrágios, que jamais conseguirão ficar miseráveis. Todo este denodado empreendimento, todo este ártduo e compenetrado esforço dos últimos quarenta anos, toda esta república do esbanjamento em série, choremos, foi, snif!, completamente em vão. Demanda mais baldada é difícil lobrigar na história da humanidade. Não havendo miséria, como explica e estabelece Platão na sua teoria das ideias (recomendo o Fedro para um consulta mais elaborada),  impossível constituir-se o miserável. Sequer habilitar-se! Impregna-se como? Prostra-se onde? Participa em quê?
O facto é que nós, os portugueses, por razões insondáveis mas imperiosas, adoraríamos ser miseráveis (e, verdade se diga, tudo temos arquitectado e burilado nesse sentido). Mas também, já agora, convém afirmá-lo sem meias tintas , porque, sobremaneira, gramamos à brava ter muita pena de nós próprios e, à falta de novas ilhas e costas, demos  em descobrir bodes expiatórios de empreitada. Que,acrescente-se, passeamos depois pela trela, com desgarbo e lassitude, onde quer que nos desloquemos ou nos convoquem. Dessarte, a lamúria, entre nós, ganhou mesmo foros de música clássica e assim como outros cultivaram o canto gregoriano, nós desenvolvemos, a requintes de sinfonia gósmica, o queixume. Quer isto dizer que o queixume, cá no burgo, não é individual: é colectivo. Todos se queixam....  De todos e de ninguém em concreto. No fundo: de tudo. O tudo fez-nos mal. A todos. Dispepsia por empanzinamento.  Impossível individualizar. Porque até quando aparentemente se individualiza é só aparentemente: na realidade, o sujeito representa apenas o todo e o tudo. É um condensado universal, ou seja, é o Universo inteiro personificado num sujeito de conveniência.  Num bode. Populacinha mais holofrénica não se conhece. Daí que ou somos todos miseráveis, ou não é ninguém. Ora, o que a senhora Jonet atesta, é que nem somos todos, nem algum indivíduo que quisesse, digamos à revelia,,  tornar-se miserável, não o conseguiria. E porquê? Exactamente, porque a miséria não se digna honrar-nos (e muito menos banhar-nos) com  a sua presença.  Trocariamos de bom grado todo o Atlântico por ela, (em desespero, abandonámos até  a pesca), mas debalde o apregoamos e bradamos aos quatro ventos e às assembleias e cimeiras internacionais. Desertou destas paragens. Abandonou-nos aqui, neste ermo inócuo, triste e definitivamente deserdados.. Ora, nós sem dinheiro ainda conseguimos exercitar  todos os vícios, mas sem miséria não conseguimos ainda ser miseráveis. Esse desmilagre, o da divisão das migalhas ainda não alcançamos (temos o surripianço do pão na massa do sangue; e do Estado) Daí que os portugueses mais tenazes e compenetrados a procurem noutras paragens. É tremendamente injusto dizer que há portugueses a emigrar para  fugir à miséria. Pelo contrário, partem em busca dela. Para Angola, por exemplo, onde podem contemplá-la em abundância e nela refocilarem com volúpia..  Vão destemidos, estugados, mas também solidários, altruístas, benfeitores: na esperança de nos trazerem um pouco dessa essência longínqua e preciosa..  Como outrora se partiu na demanda da pimenta, da canela, do açafrão, zarpa-se agora na senda da miséria, essa especiaria rara e valiosa sobretodas. Inimagináveis os requintes, as exuberãncias miserabilistas que o desmbarque providencial de tão exótica fragrância nos concederia.
 Adivinho alguns murmúrios de incredulidade na audiência. Objectam-me, em surdina, com a miséria moral, pois,  esse substracto que campeia e viceja como nunca antes na nossa história  Não posso  negá-lo. Ninguém pode. É mais que evidente que em matéria de ânimo, aprumo e  moral teremos, nestes últimos anos, alcançado um nível interessante, prodigioso até.. Descemos mesmo abaixo da miséria, à sub-cave da cobardia subterrânia mais invertebrada. As minhocas, aquelas  que ainda nos conseguem encarar sem vómito, já nos olham com ares superiores e desdenhosos. As lesmas ignoram-nos, a grande altitude; e mesmo os persevejos, que acamaradam loquazmente com fungos, até esses snobam de nós. A fraternidade, se é que se pode chamar fraternidade a um bivaque clandestino nas fímbrias duma suinicultura, só já a encontramos junto de certas seitas microscópicas de bacilos e criaturas unicelulares.. Mas esse tipo de miséria (moral, come-se isso da moral?...) não conta nem merece qualquer tipo de consideração. A senhora Jonet refere-se, obviamente, à miséria que interessa para as estatísticas e eurísticas... aquela que, enfim, pode caucionar e alavancar lamúrias, lágrimas e pedidos de socorro, resgate, subsídio! ao universo: a miséria material. Ah, se não é material, não vale nada! Não presta! Direi mais: não existe! Porque só esta, ao contrário da outra que geralmente dignifica, enriquece e causa inveja, excepto naturalmente aos genuínos insectos,  só esta, repito e registem, mete dó. Só ela desfruta desse poder de desencadeamento daquele coro ninfónico (porque, na verdade, nem não nem sim: nin) de lamúria que tanto nos fascina, tripula e preenche.
Podemos ainda assim ser pobres? A pobreza, a irmã penúria ainda velam e aguardam, languidamente, nas margens e recessos das cidades...  Bah, magra compensação, fraca contrapartida.. Um pobre não mete dó: mete nojo! Dá asco. Pede limpeza, não pede auxílio. A pobreza é a lepra moderna; o gafo ignominioso, abominável... a fobia suprema da nossa esquerda auto-beatificada. A pobreza é interdita - não se pode ver, tem que ser escondida, varrida, trancafiada, mascarada, insuflada de silicones e botoques, armazenada em bairros sociais, em ghetos dos subúrbios, em galinheiros a crédito ou coelheiras a prazo. Onde deve marinar e fermentar até - por arte da levedura usurária, da culinária burocrática e do vapor dos mercados - incubar a miséria. Este, pelo menos, era o plano. Foi o plano. E a senhora Jonet vem agora revelar-nos que o plano falhou. Que o sonho ruiu... Que a miséria não veio.  Estamos desgraçados! Duma desgraça, ainda por cima e para cúmulo, inconsequente. Gora, estéril, improfícua... Inútil. Eternamente pobre.
Falta-nos a corrupção, desamparou-nos a mentira, abandonou-nos, ainda mais, a miséria. Avantaja-se e constrange-me uma dura e amarga conclusão: também a estupidez já não é possível - nem se avista - em Portugal.

4 comentários:

lusitânea disse...

eh,eh,eh...
A malta não quer ser diferente dos haitianos...os únicos africanos politicamente organizados fora de África...

zazie disse...

aahhahahaha

"Quem não chora não mama".

Além do mais, se existe um banco que alimenta, para que raio havia ela de dizer que ainda ficam com fome

Mas a escardalhada passou-se- era o que faltava tirarem-lhes os famélicos da terra para justificarem a partilha do bolo.

zazie disse...

«É tremendamente injusto dizer que há portugueses a emigrar para fugir à miséria. Pelo contrário, partem em busca dela. Para Angola, por exemplo, onde podem contemplá-la em abundância e nela refocilarem com volúpia.»

ehehehe Delicioso.

Anónimo disse...

"É tremendamente injusto dizer que há portugueses a emigrar para fugir à miséria."
No tempo de Salazar desterravam-se condenados para terras longinquas, mas nossas, herdadas do sangue e suor dos nossos antepassados.
Hoje em dia, os portugas, muitos com cursos superiores, emigram, voluntariamente, para as terras longinquas dos outros. Eis a grande evolução que a famigerada democracia nos trouxe.