sábado, julho 05, 2008

Este Kant à beira-mar plantado (rep)

Embora não pareça e não sei quantos mil jornalistas insidiem e conspirem, Portugal é um país de génios. De génios, de doutores congénitos, de crânios predestinados, é o que vos digo! A prova? Nenhuma outra região do globo, creio mesmo que da galáxia, reune sob as suas fronteiras uma tal densidade de eruditos em Kant. É preciso dizer mais? Experimentem, numa qualquer esquina, interrogar um transeunte, um indígena avulso, mesmo uma porteira que por ali ande, de cão em trela, à espera que a alimária se alivie... perguntem-lhe, vá. “Kant? Emanuel Kant, o filósofo de Konisgsberg?! –Obsequia-vos logo, o aborígene, todo pressuroso. –Não tem nada que enganar, amigo: segue sempre em frente, vira à direita, outra vez á direita, encontra uma praça, com um jardim, é aí mesmo!” E se não vos brindar, à despedida, com um trocadilho brejeiro –do estilo: “mas cuidado não vire à esquerda na segunda direita, senão em vez de Konigsberg vai dar a Caralhisberg, uma chatice, ah-ah-ah!...” – já ides com sorte. Isto tudo se, entretanto, qualquer outro basbaque, daqueles que rondam sempre de olho atento e ouvido à escuta, não flanar nas redondezas e se aperceber da questiúncula. Porque, nesse caso, arrepiai-vos boa gente, pois haverá debate pela certa. Kant é matéria que nenhum português de gema se atreve a deixar impune. O segundo obstará de imediato ao primeiro: “Olhe que não, está a fazer confusão. Aí, na praça, é o Hegel, o filósofo da dialéctica. Kant, o Emanuel, fica dois quarteirões mais acima, logo antes da Travessa do Fichte, o amigo do Schelling”. “Você está a fazer confusão entre o filósofo e o crítico da razão, ora essa!... –retorquirá, o primeiro. –“O crítico é que mora no Largo da Transcendência, o filósofo é como eu digo!...” Nada a fazer: muni-vos de toda a vossa santa paciência e preparai-vos para uma logomaquia das antigas. Um terceiro, um quarto, não tardarão. Parecem moscas atraídas pela bosta. Em menos de nada já é um areópago, uma assembleia, uma conferência. Cada qual –e serão muitos, garanto-vos–, tentará impingir-vos um itinerário diferente, o último sempre mais peregrino e rocambolesco que o anterior. Quando começarem a berrar alto coisas como “Leibnitz”, a vociferar “Hume” e “Wolf”, e a mandarem-se uns aos outros para o Platão que os pôs ou a socratizar-se naquela parte que vós imaginais, então, temei, fixai que é chegada a hora de sairdes pianinho, à francesa, que o caldo, depois de ferver em três tempos, vai entornar-se pela certa. Ora, se o povo avulso é assim, imaginem agora os assistentes universitários, os catedráticos, os jubilados (já não falando nos estudantes, essa inefável classe de vermes em trânsito para mariposas). Pois, envernizai a espontaneidade popular com uma camada lustrosa de neurose obsessiva e aí tendes o quadro dos eruditos (em acto ou im-potência). Resumindo: neste raio de país, não há quem não nos explique Kant, com minúcias do arco-da-velha, escalas mirabolantes e em versões tão abstrusas e estapafúdias que nem ao diabo lembrariam, mas todas elas geniais, é claro. Aliás, quanto mais abstrusas, mais talentosas, foras-de-série. Este, de resto, é um traço essencial do carácter luso, um fundamento da sua idiossincrasia: o português não explica, complica. Respira convicto que saber uma coisa -dominá-la até à medula dos ossos-, é complicá-la, ou seja: arrastá-la pelos cabelos a um labirinto, atomizá-la num alucinante puzzle ou triturá-la em pasta homogénea, em puré imarcescível, com a varinha mágica da sua sobrinteligência. Os portugueses alcançam mesmo o prodígio inaudito de conseguir complicar Kant. E tudo isto duma forma inata, espontânea, enciclopédica. O preço para tanta glória? Apenas uma ligeira contrariedade... Emerso em tão feéricas e prolixas tramas, o patrício nunca entende as coisas: contende com elas. (Uma bagatela, portanto, Deus o abençoe).

Escrevi aqui isto em 18 de Outubro de 2004 - há quase quatro anos, portanto. Hoje, todavia, poderia ainda acrescentar:
Nestes nossos vis e apagados tempo, à falta de Deus, os aborígenes acreditam em qualquer farófia. E, com idêntica codícia, à falta de glória, cobrem-se de qualquer coisa... Ridículo, quase sempre.

Aliás, eu bem digo: o problema maior da gente actual deste país é bem pior que simples ignorância: é adolescência. Furiosa, relapsa e contumaz.

9 comentários:

josé disse...

Um país de kantadores? Ou kantaroleiros?

zazie disse...

ahahaha

É para enfiar o barrete, também, imagino

":O))))

O que me encanita é lançarem-se afirmações retumbantes em nome seja do que for.

E, se este post tem a ver com o que imagino, foi precisamente isso- fazer-se de uma qualquer filosofia uma kantiga.

Anónimo disse...

sempre achei esquisito que gente com cerebro se limite a citar. não preciso que ninguém interprete o mundo por mim. sobretudo quem nasceu 200 , 300 ou mais anos antes de mim. prefiro ligar ao savater , castells ou habermas. ao menos partilhamos alguma coisa.

zazie disse...

Ah sim, o Savater é um excelente...

cozinheiro

katrina a gotika disse...

Kant era aquele gajo da trombeta que fazia chegar a realidade aos sentidos, não era?

Mário Chainho disse...

«não preciso que ninguém interprete o mundo por mim. sobretudo quem nasceu 200 , 300 ou mais anos antes de mim.»

Quem diz isso não se apercebe que só acha isto porque se demitiu da tarefa de interpretar o mundo e a deferiu nos modernos pensadores, de quem é agora mero eco que se ilude de ser voz principal. ‘Pensadores’ que a única coisa que partilham connosco é aquela ponta de loucura nada saudável.

Ainda dizia o Joaquim no PC que não existe essa coisa de espírito revolucionário. Então isto o que é?

Anónimo disse...

olhe, dragao, vexa tem pinta!
Obrigado

Anónimo disse...

«não preciso que ninguém interprete o mundo por mim. sobretudo quem nasceu 200 , 300 ou mais anos antes de mim.»

"piolhos na cabeça de anões aos ombros de gigantes" - Dragão

joao de miranda m. disse...

Nada mais a acrescentar. Está tudo aqui. Grande texto.