quinta-feira, setembro 20, 2007

A Trolharia ou o Cripto-feudalismo

Em 1935, a propósito dum "projecto de lei sobre Associações Secretas" apresentado por José Cabral na Assembleia Nacional, escreveu Fernando Pessoa:
«Começo por uma referência pessoal, que cuido por necessária, não dever evitar. Não sou maçon, nem pertenço a qualquer outra Ordem Semelhante ou diferente. Não sou porém anti-maçon, pois o que sei do assunto me leva a ter uma ideia absolutamente favorável da Ordem Maçónica.»

E mais adiante: "O camartelo do Duce pode destruir o edifício do comunismo italiano; não tem força para abater colunas simbólicas, vasadas dum metal que procede da Alquimia".

Ora bem, por especial deferência ao maior vulto das nossas letras, também eu principio por uma referência pessoal não menos incontornável:
Não sou maçon, nem católico, nem pertenço a qualquer ordem, religião, seita ou ideologia semelhante ou diferente. Não sou porém, anti-católico, como hoje em dia tanto está na moda, nem, tão pouco, anti-maçon, e passo a explicar porquê.
Pessoa recomenda que não se confunda Ordem com seita. E é esse quesito básico que cumpro. Não confundo uma associação de malfeitores, de ratões e nepotes sabujos - em suma, um grupo alta-recreativo e excursionista de Amigos do Erário Público - com uma Ordem Esotérica. De esotérico é que aquilo não tem nada. De espertalhão, de mafioso, de valhacouto, sim, tem tudo. Transborda. E o único segredo que cultivam é o que dá a alma não ao mistério, mas ao negócio. Refiro-me, como qualquer cidadão adulto na posse mínima das suas faculdades cognitivas já percebeu e facilmente constata dia-sim-dia-sim no sórdido presente desta terra lançada aos abutres, a essa coisa tumorosa e cancerígena que responde pelo pomposo título de Grande Oriente Lusitano. O próprio nome é sugestivo e apropriado: orientação não lhes falta. Julgo mesmo que não gastam a vida senão nisso: orientarem-se. Orientam-se pela medida grande. À grande e à francesa. Anda o país todo desorientado para que eles se orientem.
Não pensem, todavia, que é preconceito ou pura malevolência minha. Admito que existam Lojas da Maçonaria Regular por esse mundo fora que preservem uma qualquer seiva mística impoluta e perpetuem, sem verdete nem caruncho, essas "colunas simbólicas, vasadas dum metal que procede da Alquimia", conforme dizia Pessoa no seu artigo. Admito, sim senhor. Não me custa mesmo acreditar que nesses digníssimos tabernáculos se busca a compreensão, intuição, iniciação, ou o que seja, a sublimes assuntos e Obras transcendentes, já não falando no conhecimento taumatúrgico dos inefáveis projectos do Grande Arquitecto e outras subtilezas fascinantes que tais. Da Patagónia à Conchichina, não o duvido, devem abundar templos desses. Da Groenelândia ao Burkina Fasso, estimo bem que proliferem, em boa luz e harmonia. Não será mesmo por falta de filantropia tão proficiente que o mundo não pula e avança e, pelo contrário, a cada hora que passa, mais patina em bosta e chafurda em sangue.
Pois, é tal qual digo: por esse mundo fora, não hesito em reconhecer todo um vasto leque de possibilidades e prodígios, toda uma cintilante pletora de maravilhas e alambiques. Que, logo por azar, nunca penetraram em Portugal. Não penetraram nem medraram minimamente que se visse. Ou se penetraram, a semente em vez de se elevar do estrume, diluiu-se nele. Porque aqui nem vê-la, à excelsa e sublime Maçonaria. Aqui, aconteceu à Maçonaria o que aconteceu ao whisky e acontece a qualquer produto escocês: martelaram-na em caves turvas à beira Trancão. O néctar deu lugar à mixórdia. De maçonaria ficou só o invólucro, o rótulo e a rolha. Esfregue-se a lamparina e o génio que sai lá de dentro usa cascos e tresanda a bombinha fétida de Carnaval. Obra de pedreiros-livres? Será, não sei aonde. Porque, para cá da fronteira, nunca ultrapassa o esquema de trolhas e mestres-de-obras, agência e gardanho de empreiteiros à rédea solta.
Operam na penumbra? Cavilam e zombam do cidadão comum? Corroem e carcomem os alicerces da democracia? Minam a credibilidade das leis e dos tribunais? Usurpam a putativa soberania popular?
Serei o primeiro a insurgir-me contra tais fábulas. Como é possível carunchar os alicerces de algo que nasce, emerge e viceja da podridão? Como é possível minar um queijo-suíço? Como é possível usurpar uma fantasia?
Por tudo isso, acusar esta seita mascarada -esta Trolharia - de conspiração ou cabala é a anedota mais estapafúrdia que ouvir se pode.
Por uma evidência escancarada: não atentam contra o regime: exercem-no, vistoriam-no, supervisionam-no. Não conspiram, governam. Melhor dizendo: governam-se. Que nem lordes, que nem abades!...

17 comentários:

Anónimo disse...

Sr. Dragão:

Já o vi menos condescendente. Eu cá não admito nada. Mação, além de nome de localidade presumivelmente honrada, é sinónimo de vígaro, trambiqueiro, pilantra, pirata, filibusteiro, burlão, gatuno, salafrário, conspirador, carbonário, assassino, pedófilo, violador, traficante de influências, corrupto, corruptor, traidor, vendilhão de pátrias, apóstata do que quer que seja, infiel, cretino, sabujo e muitas mais coisas de que agora me não lembro nem quero lembrar mas todas no essencial da ordem das referidas ou bastante piores.
Não admito, por impossibilidade conceptual e contrariedade à verificação empírica, que algures, nos mais recônditos recessos do universo, nestas que habitamos ou em quaisquer outras dimensões cogitáveis, exista uma loja de sacripantas que o não sejam (sacripantas).
Por mim toda essa manada funambular de criminosos por irreprimível tendência era rigorosa e duramente perseguida e punida, com perda de direitos civis e políticos, expropriações totais e cadeias prolongadíssimas, eventualmente acompanhadas de severos castigos corporais - porque aquilo é um bicho que se lhes mete no corpo e já não sai; não são homens transviados, são bichos, inimigos jurados da tranquila e honesta existência humana.

zazie disse...

ahahahah
"O próprio nome é sugestivo e apropriado: orientação não lhes falta. Julgo mesmo que não gastam a vida senão nisso: orientarem-se. Orientam-se pela medida grande. À grande e à francesa. Anda o país todo desorientado para que eles se orientem."
......................

Mas o Kzar tem uma grande dose de razão. Também nunca existiu essa separação do exoterismo da vigarice terrena, nem mistura política. O Pessoa é que era um lírico.

zazie disse...

Também estava com excesso de pudores. O Kzar não tem apenas um grande dose de razão. Tem toda.

ahahahahah

zazie disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
josé disse...

É só para avisar que vou pôr este texto a render mais algumas leituras.

Com subscrição do mesmo.

dragão disse...

Senhora Zazie, cavaleiro Kzar: e a ironia não conta?... :O)

Além disso, existem certas matérias que requerem, pelos menos dois cuidados no seu manuseio: prudência e pinças. Pelo menos, é o que se aprende com Ulisses diante de Polifemo.

zazie disse...

Claro que conta. E, de tal maneira, que já postei uma passagem. Está genial.

":O))))

Eu não sei como é possível sair-te assim tanta coisa seguida. É que é diário e sai perfeito.

lusitânea disse...

A ditadura não permitia "lojas".Por isso é que todos levam o auto-título de anti-fascistas.
Convenhamos que era chato terem que andar a dividir o bolo em público...
Admito estar a ser injusto mas sou um pouco avesso a aceitar milagres...

Anónimo disse...

Sob a designação de Maçonaria, esses "abades" misóginos efectuam a inversão:
transformam "ouro em chumbo".

memorias disse...

Caro César Dragão:

Devo começar por dizer que sou maçon regular, e isto por uma questão e honestidade. Você merece-o.
Decididamente estamos perante um caso sério e quase único de perfeição no pensamento e na escrita; de lucidez. Queira ou não, estou a falar de si, de quem não perco um post. Talvez não imagina a tristeza, melancolia com que li este texto seu. É um texto belo, muito bem escrito como sempre, e tristemente real, bem real, no que nos toca. Quem me dera que cada maçon regular tivesse a humildade de escrever um texto assim, introspectivo, melancolicamente tocante e real que só nos faria bem debater internamente para podemos progredir no caminho do aperfeiçoamento espiritual.
Você talvez nem sonha o quanto estas tristes reflexões nos ocupam, na busca desesperada a que nos propusemos um dia, na Loja em que trabalho.

memorias disse...

Seria fácil arranjarmos bodes expiatórios externos - 300 anos de Irregularidade, com um macabro regicídio à mistura, seguidos de uma arrancada na regularidade marcada por uma amostra narcísica com laivos de senilidade - mas isso não chega nem pertence à nossa postura.
Temos que buscar o mal dentro de nós, por muitas tormentas que nos custe.
Se esse texto ajudar, só temos que agradecer-lhe.
Que Deus o ajude.
E prossiga, rasgue sempre esta mediania que nos assola, numa sociedade por dilemas entre o Mantorras e um outro Mantorras qualquer.

Anónimo disse...

Caro Memórias: Eis dois comentários que apenas posso classificar de justos e perfeitos.

Parabéns.

dragão disse...

Caro Memorias,

a elevação dos seus comentários justifica plenamente duas coisas:
1. Que eu brevemente aqui publique o texto de Fernando Pessoa na íntegra (fará de contraditório ao meu);
2. Que explicite sucintamente a diferença entre Maçonaria Regular e Irregular (o que se calhar até devia ter feito previamente).

Honra-me com a sua atenção.

Anónimo disse...

Revejo-me nas Boas Vontades, e no bem estar que sinto nesta casa.
Um abraço
Takitali

memorias disse...

Caro César,

Pede-me uma explicitação sucinta entre a Regularidade e a Irregularidade.
Na Maçonaria Regular é obrigatória a crença num Ser Supremo, um Espírito Universal do qual o Homem é uma partícula -Deus, qualquer que seja a Sua designação, tipo de crença; e, em sociedades democráticas, a aceitação do Estado de Direito e não interferência sobre o mesmo. As opções políticas de cada membro são apenas da sua conta mas não se misturam nunca com a sua condição de maçom.
Na Irregular,embora aceite crentes, impera a visão estritamente materialista da Vida , e na política... já tudo se sabe ou vai sabendo.
São as duas maiores diferenças.
Espero ter ajudado a perceber.
Um abraço

Anónimo disse...

Caro Memorias,

Não me fiz explicar bem. Eu sabia dessas diferenças e o que queria dizer era que talvez devesse, eu, tê-las exposto previamente ao postal. A maior parte das pessoas escuta o termo "Maçonaria" e julga que é tudo igual, que não existe essa divergência.
Em todo o caso, fica já esse seu esclarecimento adiantado e os meus agradecimentos pelo mesmo.

Kzar disse...

Claro que conta, Sr. Dragão, e não deixei de a notar.
Sucede é que quando ouço falar em pedreiros livres sou tomado de compulsiva fúria lançadora de tijolos maciços e argamassa espessa.
Como costuma dizer-se, disparo logo em todas as direcções, que nunca se sabe de onde vem e onde se esconde essa maléfica tropa e cautelas nunca são demais.