segunda-feira, dezembro 19, 2005

A Travessia

Como há muito tempo não celinizo, aqui fica:

«Descobrimos em todo um passado ridículo tanto ridículo, tanta credulidade, tanta aldrabice, que desejaríamos por certo acabar de vez com a mocidade, esperar que ela se desprenda, nos ultrapasse, vê-la ir-se, afastar-se, olhá-la em toda a sua futilidade, dar-lhe a mão no seu vazio, vê-la passar de novo à nossa frente e depois partirmos nós, ficarmos certos de que na verdade ela se foi, a juventude, e tranquilamente, pelo nosso próprio caminho, passarmos vagarosamente para o lado de lá do Tempo, e observarmos então a verdade das pessoas e das coisas.»

- Céline, "Viagem ao Fim da Noite"

Para não variar, corroboro em pleno. Subscrevo. Testemunho. Se é que não vou mesmo mais longe: por mim, quando me falam em "novo" (ou moderno, que é sinónimo) corro a pegar numa espingarda.
Passa-se pela juventude como por um deserto: sedentos e famintos de oásis, a vaguear, perdidos, atrás de miragens. É só no fim da travessia - se por sorte ou acaso não rebentarmos ou fenecermos antes - quando finalmente nos debruçamos sobre um inequívoco charco real, na fronteira para um novo tempo, que um primeiro reflexo da nossa imagem nas águas como que nos abala e desperta. E não, não é a figura do peregrino, nem do tuaregue, ou muito menos do profeta incendiário, o que o espelho líquido, com crueza escarninha, nos mostra: é, tão só e sordidamente, a de um exausto e vulgar camelo.

1 comentário:

josé disse...

E que tens a dizer de Manuel Antunes?