segunda-feira, março 07, 2005

A Odisseia anual Caguinchiana


De vez em quando –em rigor, uma vez em cada ano – o Caguinchas vai de visita a casa. A mulher espera-o, de emboscada, com contas sempre antigas e facturas acumuladas por receber. Vitupera-o, discutem, andam à porrada, partem coisas, dão gritos, e depois, seja porque aquilo os excita, seja porque ela cai exausta, com a combinação em desalinho e as pernas à mostra, ele –indecentemente- aproveita, e, com ganas de seiscentos diabos, faz-lhe mais um filho. Ela, nesse entretanto, por via de electrocussão súbita ou de compressão dalgum botão mais sensível, de exausta transfere-se a possessa: arranha-o, morde-o, estrangula-o, enrosca-se feita cobra constrictora, e fá-lo, desconfiamo-lo bem, passar um bom bocado. Finalmente, por alturas do clímax com que a natureza brinda as suas favoritas, ela grita de novo, uiva aos quatro ventos e respectivas brisas, num estertor ribombante de plantar benzedura em todas as beatas das redondezas e atrair à cusca todos os putos do bairro, enquanto ele, ou por mania inveterada de sincronismos, ou por simpatia fornicabunda, em nada se coíbe de acompanhá-la aos urros, aos brados de incitamento dignos duma tauromaquia descabelada e pornofazeja. Diz, quem o escutou, e sou testemunha que se propaga a grandes distâncias, que é um espectáculo digno de se ouvir. A coisa chega a ter contornos de rapsódia animal. Até que -contam os mitos da vizinhança- por imutável desenlace, um suspiro profundo, um arquejo cavernoso, derradeiro, encerra as hostilidades amorosas e ela, num fulminante êxtase, cai para o lado, desfalecida e saciada para mais 365 dias e outras tantas noites. Facto providencial, esse, pausa deveras oportuna, que ele, manquejante, mordido, escoriado, em perfeito desalinho, ainda meio a pingar e a sacudir-se, aproveita para se pôr ao fresco, dar de frosques, tal qual, aliás, faz e recomenda, entre outros, o pequeno macho da tarântula, por hora de idênticos apertos e desapertos. Eu, no lugar de ambos, o Caguinchas e o "tarântulo", se calhar fazia o mesmo.
Resta acrescentar que no fim da retirada –convenhamos, estratégica –, fica invariavelmente a tasca, aliás ciber-tasca. Ano após ano, é aí, nessa praia de abrigo, que um Caguinchas invariavelmente esfarrapado, náufrago urbano e maltratado da ilha dos amores, vem desembarcar ulissianamente. Feito num Cristo - mas um Cristo ufano e refastelado, triunfador dum Calvário de delícias -, ofusca-nos, então, a todos com o brilho de sóis ignotos que traz no olhar. Um explorador amazónico acabado de regressar do Eldorado, após excursão alucinante por selvas e pantanais, evadido à tangente de feras bravias e tribos antropófagas, não se apresentaria mais condecorado.
Nessas alturas peregrinas, de raro esplendor homérico, uma vez sem exemplo, confesso: temos inveja... Todos! Mordemos a beiça e cobiçamos-lhe as botas. Ao filho da puta do Caguinchas, imagine-se! Que, nesse dia, não há como negá-lo, é o maior. Logo que entre, arrastando-se glorioso, lacerado, a tasca cala-se, estatui-se, em respeitosa veneração. Um silêncio sepulcral, reverente, em jeito de grinalda, é lançado aos pés do arqui-herói que regressa, que desfila, que ostenta, com empáfia, com pompa e circunstância –como manda a ordem, as marcas da sua bravura.
E o sacana sabe disso, o grandessíssimo cabrão, salvo seja!... Oportunista miserável, desfrutador do momento, aproveita a ocasião e responde às trombas em continência, desembainhando ao alto alardes do estilo:
"Estão a ver, ó pichas moles? Macho é assim!..."
A malta engole e cala. O homem, macho de facto incontestável, vem coberto de golpes, mordido e ensanguentado, lá das bandas do Eldorado, e a coroar cada ferida –sendo elas, ainda por cima, mil e muitas – traz reverberações de ouro, fulgores de rubi, irradiações de diamante. Até nos poderia escarrar em cima, que a pandilha acharia justo. Guardaríamos a lostra num frasco, a que prestaríamos culto pagão, devoções de relíquia, tal qual aqueles objectos preciosos, camisolas ou pedaços de muro, que certos maduros coleccionam a título do "eu estive lá". A custo, devo dizê-lo, contemo-nos de não cair de joelhos, prostrados, em adoração.
Entretanto, exagerando nos combalimentos, o Caguinchas senta-se. Como um leão ferido –ou melhor, como um domador de leões após um motim raivoso destes –, põe-se a lamber as feridas, dá-se ares de heróico estoicismo. Munido de aguardente velha –que toda a malta faz questão de lhe oferecer -, entrega-se aos curativos. Ora entorna pela goela (para anestesiar as terríveis dores, conforme explica), ora entorna pelas chagas rubras, a banhar os sulcos épicos que lhe dignificam, a cumes olímpicos, a carne. Rasgou a camisa e ensaia garrotes, pensos ad-hoc. Uma dentada mais sincera, que lhe devasta o ombro direito, deslumbra grande parte de plateia. Os restantes embasbacam, num pasmo idólatra, com os rasgões unguliformes que lhe exaltam as costas.
A certa altura, tomado dos humores caprichosos próprios dos seres predestinados, berra:
-"Tragam-me álcool puro, foda-se! Isto com a aguardente não se aguenta -ainda me gangrenam os tomates! Esse cabrão do Armindo deve tê-la baptizado, diluído, o filho da puta!..."
O citado Armindo, dono da taberna, baixa os olhos e esconde-se atrás da máquina de café, aterrado, temendo o linchamento pelos fiéis; enquanto a mulher, de emergência, larga os tachos e corre a satisfazer o decreto do super-herói. O Caguinchas, sem mais delongas, reforça a anestesia, entornando o álcool puro pela goela e a aguardente velha sobre as feridas.
-"Ah, assim está melhor! – exclama.- As piores hemorragias são as internas!...Já me estava a esvair!..."
É nesta altura que, aos olhos extasiados da maralha, ascende de superhomem a deus.
Ao mesmo tempo, como se tamanhos prodígios não bastassem, dá-se ainda, o finório, ao requinte de ir polvilhando de desabafos sublimes o pudim já de si excelso da situação. Fá-lo como quem conciliabula com os próprios botões, mas até porque estes primam em larga medida pela ausência, fruto da refrega épica, murmura alto o suficiente para que todo o auditório oiça:
-"Irra, esta mulher lembra-me os tempos de África. Quando se vem, um raio me parta se não é a minha velha G3 em figura de gente: nada de tiro-a-tiro, sempre em posição de rajada!..."
Mas a pérola-mor eclode quando porventura alguém, eu por exemplo, cai na asneira de lhe perguntar pela saúde da ferocíssima consorte...
-"Então, Caguinchas, lá vens da visita anual...E que tal está a Anabela?..."
-"Anabela?!! –ruge ele. – Baptizaram-na Anabela, as bestas dos padrinhos. Mas mais valia terem-na baptizado Anaconda!..."

Pois é, meus caros: Há heróis assim. A nós, vulgares mortais, cumpre-nos velá-los, admirá-los enquanto vivem. Até porque, sabemo-lo bem, um dia não regressarão.

7 comentários:

r disse...

E calar heróis, caro Dragão, é (quase) um crime! Eles que falem! Alguém os há-de ouvir. Eu cá, não dispenso uma boa palavrinha desses "seres", sobretudo quando quem lhes dá voz é possuidor de excelente pena!Faço-me entender? :o)

r disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
r disse...

Caro Dragão,
Publiquei o mesmo comentário duas vezes. (Esta merda do Blogspot está cada vez pior!) Com desfaçatez, permiti-me a apagar um deles. Não foi por mal… as minhas desculpas…

dragão disse...

Há pitéus ou beberagens que requerem o paladar de entendidos. O vulgo agonia-se. Entendemo-nos perfeitamente, caro R.

Anónimo disse...

Em visita semelhante de antanho, bem me lembro as duvidas em pegar na pena permanente 7.62 ou numa esferográfica 9,nem na de escrita fina 6.35!
Como eu e o Caguinchas conhecíamos tais ressacas, sabiamos que podiamos magoar alguém.
Agora quando acordamos cantamos ... somos magos
feiticeiros ... a bola de cristal ... passou-nos ao lado ... mas ainda
a pintamos nua! ...
Agora e de repente, quanto maior é ... a distancia, menos me passa ao lado!
Oh Armindo vai lá buscar essa droga para o Dragão, e deixa-te de fitas.
Um grande abraço

Anónimo disse...

Por situação parecida passei eu outrora. Todo escalavrado fiquei eu antes, não depois. Como ainda não conhecia o Caguinchas tive que decidir tudo sozinho.
Pareceu-me fácil, seguir em frente, era forçosamente o caminho.
Decidi nada escrever com a ‘pena de tinta permanente7,62’ nem com nenhuma esferográfica, fosse ela de ponta fina-6.35 ou de escrita normal-9.
Nem águas rosas, nem laranjadas, nem nada da outra malta.
Só toranja, e malte com gelo.
... Telefonei mais tarde, ... e disse-te com medo, que nos montes e vales apesar do cuidado onde púnhamos os pés, numa instabilidade lógica de quem não quer explodir... sabíamos que não éramos magos feiticeiros... e que ainda podíamos magoar alguém. O Valentim não escreveu a carta, arrumou as canetas e,
... hoje acordou cantando, com bola ou sem bola de cristal, e voltou a pintá-la Nua, numa chama minha e dela.
- Não rima disse-me ele.- Pois não! Que rimasse ele com a Anabela.
- E agora?
- Agora, alargando a distancia, o sofrimento será sempre mais profundo.
Os valentes continuam cantando ...
...e nela te pinto nua, nua...
Numa chama...minha e de quem a ... entender...
- Oh Armindo! Vai lá buscar essa droga para o Caguinchas, que eu dou um grande abraço ao Dragão.
P.S.- o primeiro emaranhado está enfaralhado.

JFC disse...

Eu aprende a escrever: amo ser o tipo aos polpos e naturalmente simple! E tu?