quarta-feira, julho 07, 2004

A Canção da Desmiolação



Fui marceneiro -e dos bons! -
Por muitos anos e bons.
A minha esposa exercia
de modista a profissão
e a vida sempre corria
sem qualquer aflição.
Se não chovia, aos domingos,
com os fatos mais janotas
Nós íamos passear,
e era um regalo, um consolo,
ir ver andar a engenhoca
para extracção do miolo.

(Refrão:)
Olha a máquina a girar
olha o miolo a saltar
olha os ricos a chorar

(Coro:) Hurrah! Cornotutu! Viva Mestre Ubu!

Nossos filhos lambusados
de bolos e rebuçados,
a brandir em sobressalto
bonecos de papelão,
trepavam connosco ao alto
do carro, e tudo seguia,
em ruidosa alegria,
para o local da função.
Lugar à cotovelada
nosso grupo disputava,
mas à cautela eu trepava,
sorrateiro como um gato,
a um monte de tijolos,
para não sujar o fato
com o sangue dos miolos.

(Refrão e coro...)

Mal começa a brincadeira,
a mulher e eu ficamos
salpicados, todos brancos
de pasta de mioleira
que os pimpolhos vão comendo,
e pulamos, todos, vendo
a agitação do parolo
De vinóculo na mão
A observar o miolo,
E pulamos, já sem tino,
Com as f'ridas atraentes
E o espectáculo do pino.
Mas que topo, de repente,
Mesmo ao pé da engenhoca?
Parece a fronha dum bode
que guardo na retentiva.
Meu velho -digo- ora viva!
Não esqueci o teu bigode.
Foste tu que me roubaste:
Não vou ter pena dum traste!

(Refrão e coro...)

De repente, a qu'rida esposa,
A puxar-me p'lo casaco,
Diz, raivosa: -ó gordo, vá,
Rápido, agora, entra já,
faz-lhe engolir, que ele gosta,
uma mancheia de bosta!
Aproveita, que o parolo
Está de costas para ti
A ver saltar o miolo!
Ao ouvir este conselho
genial, eu logo faço
muita força da fraqueza,
e atiro sobre o ricaço
um grande bolo de mérdia,
que acerta, mas no nariz
do parolo, ó infeliz!...
(Caprichos tem a matéria...)

(Refrão e coro...)

E logo p'la multidão
sou pisado e despejado
por cima da vedação.
Num desesperado mergulho,
pró porão escancarado
donde ninguém há voltado
p'ra mostrar o seu orgulho.
Acontece cada uma
quando se vai ao domingo
Acompanhado ou sozinho!
Vai-se arejar a pluma,
dar um ou outro tirinho
por interesse ou desenfado,
Sai-se escorreito, vivinho,
E volta-se defundado!

-Alfred Jarry, "Ubu-Roi" (Versão e adaptação de Alexandre O'Neill)

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