Este país não respira, conspira. Conspira, suspira, transpira, aspira, mas respirar é que não. Já não se mexe. Agita-se, fermenta, mas já não se move por vontade própria. Perdeu o ânimo e a cerviz. Ah, sim, é palco duma actividade febril... Todo ele justifica um frenesim intenso. Abutres, hienas, chacais, hordas de vermes sôfregos disputam-no com volúpia. Os parasitas, que em vida o transportaram à vulnerabilidade e à falência orgânica, aproveitam agora a confusão e transferem-se para o pêlo e a tripa dos necrófagos: carraças, pulgas, piolhos, lombrigas, vírus, bactérias, tudo aquilo migra, tudo aquilo trepa, tudo aquilo se evade e infiltra.
Era eu pequeno, dumas cinco primaveras, quando o meu pai teve a brilhante ideia de construir uma casa junto a um rio. Era uma bela casa, um recanto encantador. Um dia o rio chateou-se. O rio o céu, o vento, Deus, sei lá, aquilo tudo. Escavacaram aquela merda toda. Eu escapei quase por milagre e para grande tristeza dos meus contemporâneos, especialmente blogosfóricos. Na altura, retirou o meu pai a família poucos minutos antes do desenlace fatal. Na aflição que preside às tragédias, que só deu para salvar a roupa que levávamos vestida, ficou para trás o cão. Era meu amigo, compincha de brincadeiras. Naquela altura eu ainda chorava e chorei pelo cão. Às escondidas, claro -a não ser de raiva, nunca chorei diante de ninguém. Um homem não chora. Julgámo-lo levado também pela enxurrada.
Mas uma semana depois, apareceu uma fotografia no jornal, o DN da época. Um daqueles insólitos para atrair basbaque: nos escombros daquilo que fora uma casa, um cão não arredava pé. Era o meu cão, de plantão ao que restava da minha casa. Não só sobrevivera: resistia.
Hoje, vistas as coisas, sei que tive sorte. Fui um privilegiado do destino. Deu-me treino prévio. Quando chegou a vez de ver ruir o país, eu já tinha o calo que dá ver ruir a casa ( e uma certa sanidade familiar junto com ela). Já me equipava músculo mental bastante para aguentar uma carga daquelas sem gemido nem lamúria. Outros não tiveram essa sorte. Foram apanhados a frio, sem preparação nenhuma. Coitados, calculo o desconforto que devem ter sentido. O apocalipse sem preliminares, assim, sem aviso prévio, pela vida abaixo, não é facilmente digerível. Não é coisa fácil.
Portanto, meus senhores, acreditem: de desgraças, de catástrofes, de hecatombes percebo. Sei bem o que sentem os bombardeados, os desalojados, os tsunamizados, os cataclismados, os massacrados por esse mundo fora. Para mim, não são só figurinhas no ecrã do telejornal. Mas de culinárias e receitas não sei nada. Mentiria se dissesse que tenho alguma, ainda mais infalível, para salvar o que anda perdido. Aldrabaria descaradamente. Não sou político e enoja-me essa actividade. Também não sou virtuosíssimo, santo de pau caruchoso e, ainda menos, catador de doutrinas ou cabeleireiro de ideias tetraplégicas.
Lições, cada qual que aprenda a sua. A vida tem escola aberta todos os dias. Não queira todavia ensinar quem nunca, sequer, aprendeu. Do essencial, eu já aprendi a minha. Por decreto da Moira, recebi-a na forma de um exemplo - o exemplo daquele rafeiro destemido e obstinado há muitos anos atrás. Resta-me, como ele, montar guarda, feito cão destes escombros. Arvorado fantasma vivo por entre este montão de ruínas. Daqui não arredo pé. É este o meu chão. Será nada para vós, mas é tudo o que me resta. É aqui que me cumpre ficar, é aqui que estou e é aqui que eu fico: de vela, sem descanso nem dúvida, a esta pátria caída, esvaída e destroçada.
Até que a morte, que acabou com ela, venha e acabe também comigo.