sábado, novembro 26, 2005

Diálogo antiplatónico

- “A Verdade?!...Livra-te de trazer para aqui uma desgraça dessas! Quero que a verdade vá morrer longe, ouviste?!!...”
- “Então não queres saber?...”
- “Saber o quê?! Que, além de cornudo, sou também impotente?... e que quando calha –ou seja, quase sempre- os gajos que me comem a mulher ainda, por desporto, me enrabam a mim e, para sobremesa, me sugam as carótidas - e tudo isso para seu bel-prazer?!!...Olha que didáctico e educativo!..."
-“Preferes fazer, portanto, como o avestruz...
-“Nem duvides. O que a alma não vê, o corpo não sofre. O horror suporta-se desde que não se pense nele. O inferno é um artefacto da Imaginação. Por isso, nada de pensamentos...sobretudo, nada de pensamentos! Fazemos como as galinhas: debicamos na bosta e vamos engordando. Quando o cutelo nos apanhar, ao menos, que nos apanhe de surpresa!...”
-“É a Alegoria da Capoeira, o sucedâneo da Caverna”...
-“ Capoeira, aviário, chama-lhe o que quiseres. Com essas alegorias posso eu bem. Com a Verdade é que não. A Verdade é um cabrão dum masoquismo redundante. É acrescentar à masmorra vitalícia a auto-tortura permanente. Chiça!...”
-“Refugias-te, então, na ignorância; barricas-te na cegueira e na surdez.”
-“ Ora, nem mais. É isso mesmo. Para que me interessa ouvir-te se o que pretendes é vir falar-me na minha telecastração, ou audiocastração, ou quimiocastração, ou o diabo que te carregue?... Em casos improfícuos desses, não duvides, faço orelhas de mercador. Não oiço. Se não os tenho, se mos extirparam ou vão extirpar de certeza absoluta, que falta me faz saber dos requintes com que o burilam, das máquinas inexoráveis e complicadas que andaram séculos a refinar para o efeito, hein?! Não me dizes?!...Isso é que devias dizer-me, ó sapiência. Em contrapartida, digo-to eu e compenetra-te: se não os tenho e vivo bem sem eles é porque não me fazem falta.”
-“Vives ou vegetas?...”
- “Esquisitices! Respiro, como, cago, masturbo-me. Há mais alguma coisa?...”
-“Há a Verdade, pelo menos.”
-“Dispenso, caralho, já te disse!... Isso lembra o padre nas execuções, consolando sobre o patíbulo. Ora, a consolação do espírito equivale à desanestesia do corpo. E no corpo é que os algozes trabalham, que as tenazes e torniquetes apertam, que os solípedes - a chicote - despedaçam. Andam nisso desde que se lembram. Imaginar que a vida não termina e se consuma absolutamente aqui corresponde a presumir que a dor, a crueldade e a tortura se prolongam para lá da morte - pelo infinito, pela eternidade. Que os homens foram só o aquecimento para Deus... Antes ser uma couve. É a minha religião.”
-“As couves não cagam.”
-“Na terra, como os homens, talvez não. Nem no céu, como os doutores da mula russa. Mas há um certo sítio onde não hesitam e cagam decididamente...”
-“Onde?...”
-“Na Verdade.”
-“Então falemos de metáforas.”

3 comentários:

Anónimo disse...

Um dos melhores posts que ja li aqui. Parabens.
Como combater o argumento da ignorancia como opio, anestesiante da realidade? Pergunto isto porque ja ouvi este argumento noutros sitios e fico sempre frustrado na tentativa de o contrariar porque pressupoe uma falta da outra pessoa, uma deficiencia, como que uma cegueira. Como descrever o arco-iris a um cego?

Unknown disse...

então.. o vermelho é tipo levares uma trolitada na cabeça, o azul é quando sentes frio, o amarelo é a cor da tua fome quando estás enjoado, o branco é aquele vácuo entre dois pensamentos. sei lá. ainda bem que a Verdade só habita as profundezas das cavernas semânticas ao longo das fendas nas crostas dos intelectuais rígidos.

takitali disse...

No outro lado da Lua, encontrei Imagine 'Whinston Lennon' e a sua última versão pirata "As Intermitências da Morte" do Nobel Saramago. Os aprendizes de feiticeiros... O desperdício melódico na primeira, compensado na mais que evidente impossibilidade de musicar a outra!?...
O génio do Dragão é por si próprio uma autêntica sinfonia. Parabéns!
Um abraço.