sábado, maio 29, 2004

PSICOTERAPIA PARA PSICANALHAS -I. Os convulsionários


Inaugura-se hoje uma nova rubrica neste blogue: o Consultório Clínico-Sentimental. A Abrir, um caso clínico. E crónico.
Acabo de receber uma mensagem aflita -lancinante, mesmo -, duma leitora em estado de choque (compreensí­vel, diga-se em bom abono da verdade). Diz ela, a pobrezinha:
"Dragão, socorro! Acuda-me, se é uma pessoa de bem, tire-me desta agonia!... É o Pacheco Pereira, Dragão! Está por todo o lado: na rádio, na televisão, nos jornais e agora até na blogosfera! Não se cala, dia e noite, faça chuva, faça sol, lá está ele - sempre a badalar, a falazar, a grungunzar, como um caní­deo inconsolável ou uma centopeia com fractura exposta, mas uma centopeia não de mil patas mas de mil línguas, todas elas histéricas!...E também eu já me sinto histérica, Dragão...Não aguento mais! Mas ninguém tem piedade do pobre animal?! Não haverá por aí­ uma alma caridosa que lhe acabe com o sofrimento?!"(...)

Acalme-se, estimada leitora. Compreendo a sua aflição. Gostaria de tranquilizá-la, de poder afiançar-lhe que tudo não passa de imaginação sua, mas, infelizmente, não posso. É, de facto, um caso complicado. O que não deixa de ser surpreendente: que um simples insecto possa causar tanto transtorno... e, todavia, bem menores são certos vírus e os amargos de boca que não nos causam e à humanidade em geral!... Convém, não obstante, aferir a terminologia: tratando-se de "l­ínguas" em vez de "pés", temos não uma centopeia, mas uma "centolabris", ou, dito em grego, uma "hecatoglossa", isto se fossem "cem lí­nguas", já que, como refere "mil", melhor será chamar-lhe uma "milolabris" ou uma "quiloglossa". Aperfeiçoada a taxinomia, avancemos, então...
Pois a forma de vida em questão (estranha forma de vida, sem dúvida) apresenta claros sintomas que, sendo singulares, não são, todavia, originais. Certas aves canoras e palradoras também são capazes de escarcéus descabelantes, capazes de fazer corar o mais incauto transeunte, mas nenhuma, é certo e sabido, consegue chegar aos calcanhares deste que refere. "Furioso" ou "galopante", são adjectivos que, desde há muito, se manifestam impotentes para abarcar o seu discurso, ou mais exactamente, a sua palraria. Claramente, Pacheco Pereira é um palrador convulsivo e a sua proeza não menos significativa foi conseguir promover a epilepsia a género maior da retórica. Sabia-se que os epilépticos davam bons generais ou tiranos trans-nacionais (veja-se Alexandre ou Napoleão), mas considerava-se quase impossí­vel que pudessem dar bons comunicadores ou demagogos (porque, geralmente, babavam-se muito, urinavam-se e mordiam a própria lí­ngua). Pacheco Pereira, honra lhe seja feita, veio para revolucionar essas categorias: É um epiléptico light, quer dizer, continua a babar-se, urinar-se e espoldrinhar-se repetidamente, mas conseguiu tranferir tais manobras do âmbito fí­sico ( tantas vezes incómodo e traumatizante para o próprio) para o âmbito dialéctico e discursivo (agora incómodo e traumatizante para os outros). Disso se ressente a nossa leitora, e tantos que, como ela, possuam uma alma sensível, ou não tenha sidom sujeitos a formas anestesiadas de lobotomia. Isso, sobremaneira, resulta do hábito que as pessoas sensatas e civilizadas desenvolveram de esperar nexo ou sentido dum discurso, ou mesmo duma mera associação de palavras. No caso em questão, tal é não só inútil como potencialmente exasperante e, a limite, traumático. É preciso não esquecer que, afinal de contas, se trata duma espécie pioneira de tradução (ainda para mais simultânea): de convulsões em vocábulos. O facto deprimente de se nos deparar algo que oscila entre (mas nunca transcende) o arrazoado, a verborreia ou o solilóquio pode ser compensado com o registo notável de tal ser levado a cabo sem morder a própria lí­ngua, nem, tão pouco, sufocar por via dela. Há, pois, qualquer coisa de funambular, malabarí­stico, inaudito, em Pacheco Pereira, essa "quiloglossa" desarvorada. Convulsivo maior, emerge nimbado de artifí­cios sofisticados e equipamentos de ponta. Como todos os epilépticos, por alturas do achaque, socumbe ao frenesim, abandona qualquer pejo, permite-se desplantes e aleives. Assim, o seu discurso não argumenta, opina ou articula: despeja, irrompe, desaba, abruptamente - a sua dialéctica, nos ant­ípodas de Platão ( e da Razão), irmana-o, na metodologia, à enxurrada. É contundente, na medida em que dispara em todas as direcões, com a irracionalidade própria dos grandes defluxos, que não sabem onde vão, nem isso os preocupa. E não obstante, algo nele, o distingue dos seus predecessores... Exactamente: a inexistência de ataques, achaques, recaí­das ou esperneamentos típicos; a epilepsia como estado normal e natural, desviada dos músculos e confinada às palavras. Mirabolante? Sem dúvida. De tal modo, que, às tantas, hesitamos: será digno de canonização ou de exorcismo?
Esta, reconheça-se, não é uma questão meramente académica. Pelo contrário, trata-se duma questão capital, que acompanha o convulsionismo, enquanto doutrina e cosmovisão, desde as suas origens. Os relatos espantosos começam no século XVIII, em França (para desgosto do nosso Pacheco que, certamente, preferiria os Estados Unidos, país convulsionário por excelência). Marie-Anne Vassereau, filha do barqueiro de Orleães, foi a das primeiras a causar sensação"(...) "Punha-se-se a agitar os braços, as coxas e as pernas, até perder os sentidos; voltando a si, saltava, fazia contorções, era preciso que várias pessoas a segurassem. Andava, berrava, profetizava. Os curiosos, os devotos, não a deixavam.(...)"
Nesta sua ancestral, reconhecem-se os traços característicos da espécie, os atavismos filogenéticos. Os paralelismos são evidentes: Marie-Anne é sensacionalista, frenética, profetiza; mas é igualmente um protótipo, um modelo ainda rudimentar. Quase três séculos mais à frente, Pacheco já não desfalece, não berra tanto nem dá saltos tão acrobáticos; as suas contorções, não menos fulgurantes, processam-se agora ao ní­vel mental, no plasma amorfo a imitar espí­rito; vaticina pelos cotovelos; e os curiosos, mais que os devotos, apreciam-no, como apreciam os grandes descarrilamentos.
Depois de Marie-Anne, surge, segundo a tradição, o cavaleiro Folard. Sugestivamente, "A sua única ocupação é rezar e ler livros de piedade, frequentar as casas das convulsionárias e seguir a pista dos pródigos"(...)
Pacheco deve-lhe muito e paga-lhe cumprindo o ritual, excepto na leitura, por falta de tempo e traumas irreversíveis ao nível do raciocínio.
Folard é complexo: "Se reza, é cantando; se nos recomendamos às suas orações, põe-se imediatamente a cantar. Outras vezes chora, e depois de ter chorado põe-se de repente a falar por monossílabos; uma verdadeira algaraviada, em que ninguém entende patavina. Alguns dizem que fala em língua croata nesses momentos; mas creio que ninguém percebe nada(...)" O génio do cavaleiro Folard repercutirá, séculos adiante, a prosápia do nosso Pacheco. Não canta, nem chora...por enquanto. Sabe-se que, lá no fundo, anela por seguir a pista (não de Santiago) mas dos Tios e, na senda de MoCinha Jardim, quando isso for suficientemente aberrante, participar num Big Brother Especial dos convulsionários.
Por fim, chegamos aos dois grandes convulsionários da época clássica: o senhor Fontaine, secretário dos decretos de Luí­s XV; e a senhora Thevenet, irmã do cónego de Corbeil. Quanto ao primeiro, em Março de 1739, "entregue ao ascetismo mais total, jejum, cilício, orações, macerações, desejava mergulhar no nada.(...)
Aqui, no método, Pacheco, por uma vez, não quis deslustrar o seu portuguesismo: num rincão onde, como lamentava Garrett, sempre campearam frades, à postura ascética, preferiu a fradesca; ao jejum, ao cilí­cio e à oração, optou pela comezaina, o trim-tim-tim e a vida fácil. Mas o resultado foi o mesmo: onde Fontaine desejava, Pacheco mergulhou de cabeça. Por seu lado, a senhora Thevenet era "muitas vezes atingida por um mal extravagante, dava saltos, contorcia-se, cometia actos indecentes, punha-se a pregar como um pregador (...) a desordem do seu vestuário prova que desconhece todos os sentimentos de pudor; as palavras que pronuncia com rapidez são ininteligí­veis e não pertencem a qualquer língua conhecida (...)."
De novo, o mesmo despudor, a mesma desordem mental, a mesma inintegibilidade na arenga, que testemunhamos diariamente e que, pelos vistos, tanto afectam a nossa leitora.
Resumindo: em Pacheco Pereira reconhece-se um legado múltiplo de tão influentes ancestrais. Como muitas vezes dizem os historiadores: nele, refinam-se e congregam-se os traços das gerações antecedentes. Em Pacheco, com efeito, num soufflé sublime, ou salganhada olí­mpica, coabitam o contorcionismo e os dotes oraculares da filha do barqueiro; o voo picado nihilista do cavaleiro Folard; a algaravia e a abstrusão do senhor Fontaine e da senhora Thevenet. Descurar esta complexidade eloquente, este prodígio da evolução da espécie, este promontório da selecção natural, é cometer um crime contra a verdade e a ciência.
Por isso, estimada leitora, detrás do caos, tente vislumbrar o milagre de Deus e da natureza, o trabalho metódico dos séculos e das moléculas. Tudo tem uma razão de ser, ainda que, às vezes, absurda: mesmo os piores monstros e abortos, não desfazendo. Se não fossem os erros da Natureza, como é que a Natureza aprenderia?
Quanto à forma apocalíptica como termina a sua missiva - (...)«Dragão, não é possí­vel ser só uma pessoa: deve ser como o Saddam Hussein, devem ser vários, sósias, clones, robôs!...Acuda-me, bom Doutor, por amor de Deus!!» - é como acabo de tentar explicar-lhe: é a Marie-Anne, o cavaleiro Folard, o senhor Fontaine, a senhora Thevenet e uma legião de tantos outros ilustres convulsionários, que, há falta dum bom Jesus que os pacifique, cismam de lavrar o seu protesto e manter bem viva a sua estirpe.

Fique bem, minha boa amiga. E escreva sempre (recomendação extensível a todos os leitores).

Um seu/vosso criado

Dragão Freud

1 comentário:

Anónimo disse...

Hilariante. E rigoroso...