quarta-feira, maio 26, 2004

ÓCIO E TRABALHO


«Há uma selvajaria (...)na maneira como os Americanos aspiram ao ouro; o seu frenesi do trabalho -o verdadeiro vício do novo mundo - começa já a barbarizar, por contágio, a velha Europa, aqui dizimando o pensamento de maneira muito estranha. Tem-se agora vergonha do repouso; quase se experimentaria um remorso em meditar. Pensa-se de relógio na mão, mesmo quando se está a almoçar, com um olho no correio da bolsa; vive-se constantemente como o cavalheiro que tem medo de "falhar" alguma coisa. "Mais vale agir do que não fazer nada", eis ainda um desses princípios de carregar pela boca que correm o risco de vibrar o golpe de misericórdia a qualquer cultura superior, a qualquer supremacia do gosto. Este frenesi do trabalho dobra a finados de todos os modos; pior,enterra o próprio sentimento desta forma, o senso melódico do movimento; as pessoas tornam-se surdas e cegas a todas as suas harmonias. A prova está na pesada precisão que se exige agora em todas as situações em que o hoem quer estar diante do seu semelhante, nas suas relações com amigos, mulheres, pais, filhos, patrões, alunos, guias e princípes; tem-se falta de tempo, tem-se falta de força para consagrar à cerimónia, aos meneios da cortesia, ao espírito da conversa, e ao ócio duma maneira geral. Porque a vida, tornada caça ao lucro, obriga o espírito a esgotar-se sem repouso no jogo de dissimular, de iludir, ou de prevenir o adversário; a verdadeira virtude consiste agora em fazer uma coisa mais depressa que um outro. Assim, só em raras horas é que as pessoas se podem permitir ser sinceras: e a essas horas, está-se tão cansado que se aspira não somente a "deixar correr" mas a estender-se pesadamente, a deitar-se.(...) Se ainda se encontra prazer na sociedade e nas artes, é um prazer do género daqueles que podem encontrar os escravos mortos de trabalho. Ah! Como fica contente por pouca coisa essa gente do momento, com ou sem cultura, como é modesta nas suas "alegrias"! (...) Neste ritmo as coisas poderão ir, rapidamente, tão longe que não se ousará mais ceder, sem desprezo por si próprio e sem experimentar remorso ao gosto pela vida contemplativa, ao desejo de passear em companhia de pensamentos e de amigos.
Pois muito bem, antigamente era o contrário: era o trabalho que dava remorsos. Um homem bem nascido escondia o seu, se a miséria o constrangia a fazer um. O escravo trabalhava esmagado pelo sentimento de fazer alguma coisa desprezível: "fazer" já o era por si só. "Só há nobreza e honra no ócio e na guerra", assim falava o preconceito dos antigos.»

Deixo aqui um repto aos leitores: Quem escreveu isto? - Um contemporâneo nosso? Um perigoso esquerdista? Um conspirador contra a religião do Mercado? Quem?...

Acrescento que por "antigos" se quer aqui significar os "antigos gregos". Nesse contexto, o fazer a guerra traduzia, essencialmente, defender a terra grega e a liberdade dos seus cidadãos. Que eram tanto mais livres quanto de tanto mais ócio dispusessem. A medida genuína da liberdade humana era então (como ainda hoje é) o tempo, o dispor do seu tempo. Ser subjugado por bárbaros estrangeiros acarretaria a canga da servidão, transformaria o cidadão grego em escravo: o que o degradava a essa condição era a perda do seu ócio, a confiscação do seu tempo, a sujeição ao trabalho forçado, como ferramenta ao serviço de outrém.
A nós, graças ao progresso e à evolução, este problema já não se coloca. Já nascemos escravos. Com a ilusão que somos livres. Por isso, a coisa leva-se (que remédio!...). É preciso é não olhar muito para trás. Senão, lá se vai a ilusão!...

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