quinta-feira, maio 13, 2004
A PRISÃO HUMANA
«O Pentágono mostrou na quarta-feira, num acto reservado exclusivamente aos senadores, cerca de 1.800 fotos e vídeos inéditos com prisioneiros iraquianos a serem torturados por soldados norte-americanos. Os legisladores consideraram as imagens muito mais fortes do que as publicadas até agora.»
Parece-me apropriado que falemos de Sade, o Divino Marquês. Também ele passou quase toda a sua vida adulta em prisões. E é em cárceres, subterrâneos, masmorras, castelos inacessíveis -ou a caminho deles-, que decorrem as suas narrativas, que evoluem os seus infames campeões e respectivas vítimas. Portanto, de prisões, um erudito, uma sumidade.
Mas Sade é, antes de mais, um metódico. Estima muito a matemática e leva Descartes numa peregrinação pelos abismos. É preciso que tudo cumpra determinadas regras e preceitos, que avance escrupulosamente desde a luz, passando pela penumbra, até às trevas mais sinistras, claustrofóbicas e fatais. É preciso que os olhos se habituem. E o estômago. Sobretudo o estômago.
Na sua obra mais abissal -"Os 120 dias de Sodoma"-, a narrativa, o percurso, é dividido em quatro partes:
1ª. "As cento e cinquenta paixões simples, ou de primeira classe..."
2ª. "As cento e cinquenta paixões de segunda classe ou duplas..."
3ª. "As cento e cinquenta paixões de terceira classe ou criminosas..."
4ª. "As cento e cinquenta paixões assassinas ou de quarta classe..."
Pois bem, a primeira pergunta que eu faço é a seguinte:
-Em que parte irão neste momento os tipos do Pentágono?... (Supõe-se que a segunda ou terceira, acho). Não esquecendo, de antemão, que também se mataram prisioneiros nas cadeias do Iraque (corresponderá, isso, certamente, à 4ªparte). O que nos leva à segunda pergunta:
- Também haverá filmes e fotografias dos corolários mortais? Terão sido, estes, resultado dum paroxismo nas torturas?
Entretanto, Sade recria o apocalipse. Mas um apocalipse puramente humano, isto é, pura e sordidamente carnal. Deus nem os anjos, negros ou luminosos, são ali chamados. Apenas a besta humana, encurralada na sua própria exasperação, soltando esgares de hiena e ritos possessos por entre as abóbadas tenebrosas e vazias da sua alma. Abissalmente, a besta espelha-se, desdobra-se, revela-se na prisão porque ela, besta, é, em si mesma, uma prisão: de instintos, de vontades, de desejos recalcados, amordaçados, emparedados vivos. Na terminologia freudiana, seria o Id ao assalto do Super-Ego. Num retrato mais simples, encontramo-la cada dia mais presente, já quase estanhada, à nossa volta, convertida em mecanismo social, expressa nessa egolatria asselvajada, nessa recusa de partilha, nesse solipsismo ganancioso desenfreado, em que o meu prazer só é possível a partir da dor de outros, em que a minha grandeza só emerge do rebaixamento de terceiros, em que a minha vitória equivale ao culto da derrota seja de quem for!
Afinal, em Abu Ghraib, os jovens carcereiros só estavam a exercer a sua liberdade. Que esta redunde numa espécie tortuosa de libertinagem não espanta: trata-se de exercitar uma superioridade incontestada, dispor a seu bel-prazer de uns inferiores indefesos quaisquer. No fundo, repetir, ao nível microcósmico, aquilo que a Nação americana tanto se ufana de operar ao nível macro: Torturar como muito bem lhe apetece, quem lhe interesse e quando muito bem entende. Só que, aí, já vai na Quarta parte. E o mundo, mais que cansado, já está embrutecido de assistir ao filme.
Quanto a Sade, fica-nos a dúvida: Monstro ou Profeta?
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