sábado, maio 22, 2004
ENTRE CILA E CARÍBDIS
«Quanto ao homem de negócios, é um ser fora da natureza, e está bem claro que a riqueza não é o bem supremo que procuramos."
-Aristóteles, "Ética a Nicómaco", Liv I
«As ferramentas são, umas, animadas, e outras, inanimadas.(...)Também o escravo é uma propriedade animada.(...) Aquele que sendo homem não pertence por natureza a si mesmo, mas que é homem (ferramenta/instrumento) de outro, esse é, por natureza, escravo.»
- Aristóteles, "Política", Liv.I
Eu cada vez acho mais graça aos nossos democratas liberais. Dispõem dum raciocínio a todos os títulos singular. Esgrimem argumentos lógico-dedutivos fulgurantes.
Não se cansam de propalar aos quatro ventos como detestam tiranias, absolutismos (especialmente estatais), arbitrariedades e ditaduras. Fascismos, nazismos, comunismos, religiões, filosofias, agoniam-nos, infestam-nos de comichões alérgicas. Solidariedades sociais transportam-nos a indignações semi-epilépticas, a jorros eméticos. Burocracias, ainda que mínimas, deixam-nos transtornados, cacofóricos, a quase espumar pela boca, atirando madeixas de cabelo ao chão e murros ao peito.
Mas isto, tudo isto, meus amigos, em termos políticos. Em termos estritamente políticos. Aliás, o problema, segundo eles, qualquer problema, é sempre político. Já a solução (e com ela a salvação), é invariavelmente económica.
Mas atentemos na sua cartilha economística...
Uma empresa, por exemplo, o que é uma empresa? Para mim e para outros leigos heréticos como eu, será (dito simploriamente, é claro) um conjunto orgânico de pessoas (administração, direcção, produção, transporte, comercialização, etc,) com diversos níveis de tarefa, responsabilidade e recompensa, + um conjunto de meios (máquinas, viaturas, matérias primas e outras, ferramentas, etc), + um conjunto de instalações, e com a finalidade de ser auto-subsistente e dar lucro. Haverá empresas grandes, médias e pequenas, mas todas elas, com as adaptações inerentes à sua dimensão, cumprirão, mais ou menos, este padrão.
Mas isto somos nós, os leigos, os simplórios, a delirar. Porque, uma vez poisados na realidade, o quadro é outro: os nossos democratas liberais, crânios sofisticados, inspirados nas idílicas engrenagens anglo-saxónicas (e apenas nessas, que nada mais presta ao cimo da Terra, e todo o restante mundo ou vive na indigência -física ou mental -, ou pra lá caminha), expurgam e purificam substancialmente a coisa. A empresa restringe-se à sua administração (os empresários e gestores), transferindo-se todo o seu restante pessoal -especialmente a malta da produção-, para a categoria dos meios, sob o item "ferramentas". Quanto à finalidade, resume-se agora ao dar lucro ao empresário (e gestor), seja, essa mesma empresa, auto-subsistente ou não. Toda a essência da coisa passa, assim, para o empresário/gestor; todo o resto desce para a categoria do acessório. Dito doutra maneira: a empresa é uma espécie de máquina (composta de ferramentas -humanas e não-humanas-, meios e instalações) que compete ao empresário (administrador/gestor) pilotar e extrair gozos. Em boa verdade, só este, o piloto, é que doravante pode ser considerado efectivamente humano, ou seja, com cidadania plena; com direitos e necessidades grandessíssimas. O resto sujeita-se aos ditames do mercado. E carrega, em calvário se preciso for, com os deveres gerais.
Esta nova religião encontrou em Portugal solo fértil e estrume em abundância para o seu cultivo. O empresário português, dadas as excelentes condições naturais, é pródigo em superações ao próprio modelo. Se lhe perguntássemos (e aos seus apologetas, os democratas liberais) o que é a empresa? Ele responderia, prontamente, todo ufano e vaidoso, detrás da gravata e da panóplia de telemóveis: "A empresa sou Eu!"
Ora, nem mais. Eis o solipsismo mercantil no seu melhor! O absolutismo econocrata elevado ao patamar sublime! O reinado do Empresário-Sol, no zénite do seu apogeu!
Compreende-se, assim, a nova revolução copernicana que os nossos democratas liberais catequizam: Estando o Empresário investido das funções de Sol não se compreende que gire à volta do País-Terra, mas sim o País-Terra que gire e se submeta à sua massa atractiva e soberana de Sol, à sua luz e calor beneméritos, aos seus caprichos de estrela e astro comandante do sistema. É Ele que dá vida, isto é, o emprego. É ele, lá no alto, que, pelo seu toque demiúrgico, anima as ferramentas humanas, doutro modo prostradas e pasto de ferrugem e desemprego, à mercê de depressões e lotarias.
Mas compreende-se, sobretudo, como aquilo que eles execram na dimensão política -a autocracia, a ditadura, a burocracia estatal-, idolatram, em contrapartida, na dimensão económica. O que nas garras do Estado é infâmia (e é, de facto), devém virtude nas patas do privado. A ditadura do proletariado é horrível (pois é); mas a ditadura do empresariado é santa. Que uma oligarquia parasita, endogâmica e endémica, se sirva dos cargos do estado para roubar e sabotar o esforço e o trabalho das pessoas deste país é péssimo; mas uma oligarquia de empresários que a substitua nessas mesmas funções é óptimo, representa um progresso inaudito, uma conquista revolucionária.
Repare-se numa aplicação prática desta mentalidade peregrina:
«Patrão» dos impostos vai ganhar 60 mil euros por mês
"Irá auferir exactamente o mesmo salário que recebia no BCP", diz Ministério das Finanças».
Mas aqui, atente-se, é já o próprio estado, ou alguém em nome dele, a converter-se à nova ideologia. A Direcção Geral de Impostos é promovida a empresa, ou seja, a máquina. Contrata-se um bom piloto, um homem da Fórmula 1, para guiar a máquina. Gratifica-se e estimula-se o piloto em conformidade, caso contrário ele não aceitava a nobre missão. É uma excelente teoria. Até já vi pessoas normalmente inteligentes e sensatas a elogiá-la.
Só tem um ou dois problemas, pequenos é certo, mas que não cabem debaixo do tapete. Não adianta pois varrê-los para lá.
1. Sendo uma "máquina", todos concordamos que está avariada. Contrata-se um piloto de fórmula 1 para guiar um monte de sucata?
Vamos competir em que campeonato?
2. Não sendo uma "máquina" (como não é), ao estimular-se e gratificar-se principescamente o Director, duma forma ilegal e obscena (dada a realidade actual), está-se a desestimular e a simbolicamente espoliar todas as outras centenas de pessoas que constituem essa Direcção Geral (e os próprios contribuintes do país, a limite). Em vez dum esforço geral de melhoria, está-se, pois, a promover um esforço individual de melhoria (por parte do novo director) e um contra-esforço geral de resistência e desinteresse coorporativo (por parte de quase todos os outros). Experimentem colocar-se no lugar deles...As intenções que presidem ao expediente, como sempre, poderão ser as melhores; mas o Inferno é que vai, mais uma vez, lucrar com elas. A esta altura já transborda.
3. Por fim, usando o léxico muito querido aos nossos democratas liberais a respeito das empresas públicas em dificuldades: resolve-se o problema não atirando dinheiro para cima da Direcção Geral de Impostos SA (que dá prejuízo e devia dar lucro), mas atirando dinheiro para o bolso do novo Director, em comissão messiânica. É isso, não é?
Ainda D.Sebastião não se dignou regressar ao país, e já querem desviá-lo para as empresas, ainda por cima estatais?...
E nós, portugueses, qual é o nosso papel no meio disto tudo (além de basbaques, claro está)?!...
Andamos aos tombos, da esqerda prá direita, da direita prá esquerda. Vamos de roldão, de Cila para Caríbdis, e de Caríbdis para Cila. Estamos reduzidos a esta confrangedora odisseia, com Ulisses naufragado entre as sereias e Ítaca entregue à voragem dos pretendentes. Vamos queixar-nos de quem? O esquema é deles. Mas a culpa é nossa.
E o que mais convinha que percebessemos, todos, é que Portugal se constrói com os portugueses e não contra os portugueses, sejam eles quais forem.
Mas desculpem, já me esquecia: afinal, é da destruição que se trata. Pois, que distracção a minha.
Já cá não está quem falou.
PS: Entretanto, com todo este know-how peregrino em erupção, com tanta tempestade cerebral à solta, erguemo-nos cada vez mais destacados, qual farol altaneiro - imune às vagas da lógica e do bom senso - no Cabo do Paradoxo: temos, ao mesmo tempo, os mais divinos empresários e administradores do universo, e as empresas e o Estado mais rascas e miseráveis da Europa.
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