sexta-feira, maio 28, 2004
PARA UMA ANTOLOGIA DO TERROR -IV. O Suplício Legal
O suplício distingue-se da tortura.
Se esta se propunha, genericamente, apurar factos, extrair confissões ou forçar a determinadas confidências (de interesse militar, por exemplo), já aquele ostentava propósitos mais edificantes. Propunha-se constituir um exemplo, estabelecer uma memória, macerar o espírito. Tanto quanto punir, a sociedade, através dele, tratava de incutir o terror e a piedade nos espectadores, exibir a grandeza da sua supremacia através da desmesura da sua crueldade.
De facto, a distância que vai da tortura ao suplício é a mesma que vai da masmorra ao cadafalso, do espaço reservado ao espaço público, do segredo ao espectáculo.
Há, de resto, uma diferença de tempo: a tortura precede, o suplicío acompanha a execução; há uma diferença de estatuto: a tortura exerce-se sobre suspeitos, o suplício sobre condenados; há uma diferença de objecto: na tortura é o corpo e o espírito da vítima, no suplício são os espíritos dos espectadores da execução e a própria história (o corpo da vítima é só o instrumento central); e há, finalmente, uma diferença retórica, discursiva: na tortura estuda-se, analisa-se, debate-se; no suplício conclui-se, apresenta-se o axioma indiscutível e definitivo. O horror passa, assim, da fase velada ao climax apoteótico, apocalíptico, retumbante. O terror, por sua vez, sempre se constituiu, ao longo dos tempos, como veículo maior e essencial da dissuasão.
Quanto às modalidades, sobretudo desde a Baixa Idade Média até à Revolução Francesa, remetiam para os crimes que era suposto punirem: Queimar vivo (delitos religiosos); enterrar vivo (aplicou-se a judeus, e a ladrões); precipitação em báratros ouriçados de lanças ou piques (Richelieu praticou-o secretamente sobre alguns inimigos; os conventos e abadias votavam-lhe monges culposos); esquartejamento (crimes de lesa-majestade); a roda (crimes diversos); esfolar vivo (adultério de lesa-majestade e alta traição); polé (crimes praticados por militares ou marinheiros); cozedura (crimes de contrafacção de moeda); atenazamento (suplício complementar dos outros).
Nas palavras de H.Samson, Antigo Executor no Supremo tribunal de Justiça de Paris, insigne membro duma família de sete gerações de carrascos (o cargo, à semelhança do rei, era hereditário), testemunhemos um desses suplícios...(leitura não recomendável a almas sensíveis):
«Mas o esquartejamento mais em uso, e que subsistiu até 1757 (Damiens foi o último regicida esquartejado) consistia em amarrar o paciente pelos pés e pelas mãos a quatro vigorosos cavalos, que puxavam em sentidos contrários, até que os membros se separassem do tronco. Quase sempre este suplício horrível era reservado aos acusadops de crimes de lesa-majestade. Duas horas de sofrimentos que não se podem descrever eram suportados pelo paciente, antes que exalasse o último suspiro. Apesar deste requinte de crueldade, o esquartejamento era precedido de várias outras penas que o tornavam ainda mais bárbaro. Com efeito, o criminoso, depois de ter feito confissão pública e de ter sofrido a interpelação ordinária e extraordinária, era conduzido nu ao suplício, dentro de uma carreta. Era deitado de costas no meio do cadafalso, que tinha a altura de dois pés, e aí amarrado com correntes, uma das quais lhe cingia o peito e a outra as coxas; amarrava-se-lhe depois à mão direita a arma de que se tinha servido, queimando-a com um pouco de enxofre. Logo a seguir, com tenazes, eram-lhe arrancados pedaços de carne das coxas, do peito, dos braços e das barrigas das pernas; entornava-se-lhe sobre as feridas uma composição de cera, enxofre e resina. feito isto, amarrava-se-lhe uma corda a cada membro, às pernas, desde o joelho até ao pé, e aos braços, desde o ombro até ao pulso; a extremidade da corda era presa à boleia de cada cavalo, que, depois de alguns galões, puxava com todas as forças. Na maioria dos casos, apesar do esforço de quatro cavalos, os membros não se separavam; então o carrasco dava golpes nas articulações, para apressar o fim do suplício. Cada cavalo arrastava um membro; reuniam-se depois aqueles farrapos sangrentos e queimavam-se numa fogueira. Foi desta maneira triste e cruel que, depois de João Chastel -que em 1595 ferira Henrique IV com uma navalha na cara - vemos morrer Ravaillac e Damiens, os dois regicidas, cuja agonia longa e cruel a história conservou.»
(Ainda sobre o esquartejamento de Damiens, existe uma descrição no "Vigiar e Punir", de Foucault, que podem ler aqui.)
Naquele tempo, convém recordar, este tipo de matiné do horror era o espectáculo predilecto da multidão: Como o teatro já o tinha sido para os Gregos antigos, ou o circo para os Romanos. O novo coliseu de medievais e modernos decorre em torno da via sacra que liga a masmorra ao patíbulo e, especialmente, no auge do calvário, diante das manobras e tormentos que culminam no cadafalso. Os carrascos suam; o condenado grita, berra, uiva de dor; o cura consola; o escrivão regista; a multidão -mulheres, homens, crianças de todas as idades que ali vêm instruir-se-, persigna-se, estarrece-se, chora também copiosamente; e, no fim, todos se retiram, em paz e harmonia, saciados e assombrados por tão ilustrativo e lauto espectáculo.
Poderíamos dizer que eram épocas brutais, costumes ainda semi-bárbaros, mentalidades mórbidas e doentias.
E, no entanto, pasme-se, ainda hoje é deste tipo de circunvoluções mentais pegajosas que, em grande medida, se alimentam o cinema, os jornais e as televisões (sobretudo à hora dos telejornais).
A morbidez não diminuiu, as encenações não são menos tétricas, os espectáculos não estão menos ignóbeis e degradantes. Apenas se tornaram uma indústria. Cada vez mais florescente.
Pior: o suplício deveio rotina. Quando não é à moda de Sade, é à moda de Kafka. Venha o Diabo e escolha.
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