quinta-feira, fevereiro 21, 2008

Plonger le diable

«Os Franceses falam muito do espalhafato que faz Satanás quando o mergulham dans le bénitier. Eu nunca assisti a essa espalhafatosa afronta feita ao venerável Pai da Mentira; nem V. também, suponho eu. No entanto imagina V. bem como Belzebu berrará e escoucinhará, ao sentir o contacto untuoso do detestável líquido. Pois, querido amigo, assim eu escoucinhei e berrei, enquanto V. com mão dura e forte, me estava mergulhando na água benta da sua Crónica sobre Os Maias.
V. concordará que esta analogia é rigorosa. Eu, com efeito, represento para V. Satanás, o pai de toda a falsidade. Eu sou aquele mafarrico que escolhe, para personagens do seu livro, não sei que janotas petulantes e estrangeirados, em vez de dar, nessas páginas, o lugar proeminente ao Marquês da Foz, aos empreiteiros das obras do porto de Lisboa, aos rapazes beneméritos que foram premiados na escola, aos construtores do bairro Estefânia, ao conselho de Estado, etc, etc. Eu sou aquele porco-sujo que pretende que as mulheres de Lisboa têm amantes, e que, nos jantares de sociedade, em vez de discutirem Hegel, o positivismo, e a psicologia das religiões, falam de criadas e de cabeleireiros! Eu sou aquele génio da maledicência, que afirma que os esplendores da Avenida são talvez inferiores aos da Via Ápia, e que a sociedade que a frequenta não é talvez nem a mais culta nem a mais original do Universo, etc., etc., por aí além.
Por outro lado a sua Crónica, meu caro Fialho, é uma bela pia de mármore, cheia a transbordar de água benta da virtude, do patriotismo, e da fé em Lisboa como capital da civilização. E, portanto, o que V. fez com a sua costumada veemência foi plonger le diable dans un bénetier. Daí os berros e os couces.
Couces e berros, sobretudo de espanto. Porque enfim, eu tudo podia esperar do seu espírito, tão impressionável e ardente, menos essa atitude de pudidícia ofendida e de magoado patriotismo. O que era com efeito de esperar, dada a sua índole e os seus escritos, era que V. criticasse o livreco, sob o ponto de vista do próprio livreco: e que, como legionário da mesma legião, ocupado também nesse belo trabalho da literatura contemporânea, que consiste em fazer o inquérito experimental das sociedades, me censurasse só por os meus golpes não serem bem destros, nem bem certeiros, nem bem úteis, nem bem claros, nem bem eficazes. Mas vê-lo de repente surgir no campo inimigo, com uma sobrecasaca séria de conselheiro de Estado, gritando - "Em Lisboa não se pode tocar! Tudo aqui é puro, belo, e grande. Vergonha ao maldizente que ouse rir da cidade incomparável, perfectissima Urbs!" - eis o que verdadeiramente me assombrou! Porquê tão singular mudança? Ó Fialho, foi V. eleito director-geral dum banco? É V. o inspirador dum sindicato? Recebeu V. das mãos do monarca, a Grã-Cruz de Sant'Iago? Está V. director-geral duma grande repartição do Estado? Que interesse supremo o fez aliar-se ao conselheiro Acácio? Está V. por acaso apaixonado pela mulher do Acácio, e finge-se assim púdico, ordeiro e patriota, para lisonjear o benemérito e cornudo homem?... Sapristi, je crois que j'ai touché juste! Nessa sua crónica sobre Os Maias, Fialho, há uma mulher! Se assim é (e estou certo que é assim), como V. deve ter sofrido, pobre amigo! Conheço essa situação, é medonha!... É ela ao menos bonita e cochonne?
Sério, sério - a sua Crónica, escrita com a sua costumada verve, espantou-me. Que V. fizesse ao calhamaço um enterrement de 1ª classe, bem está! O grosso cartapácio, com mil bombas, fervilha de defeitos. As duas próprias cenas que V. incondicionalmente louva, estão bem longe de me agradar! Mas que V. fizesse a vista grossa sobre esses defeitos, para se lançar sobre mim com indizível fúria e acusar-me de falta de respeito pelas nossas virtudes, pela nossa elevação moral, pela grandeza da nossa civilização, e pelo esplendor de Lisboa como capital - é forte! Coisa espantosa ver o meu velho e rebelde Fialho repetir, quase ipsis verbis, um grande rasgo patriótico do Tomás Ribeiro, há anos, nas câmaras declarando "traidores os que faziam, em escritos públicos, a crítica dos nossos costumes!" O Ramalho, fez, sobre essa saída do lírico da Judia, um artigo extraordinário nas Farpas.
Esta carta vai longa. E não me alargo por isso mais, além deste ponto de vista da sua Crónica - que foi o que me impressionou. Havia, porém, nela, ainda outros detalhes, que eu desejaria discutir com Você, violentamente. Assim, diz V. que os meus personagens são copiados uns dos outros. Mas, querido amigo, uma obra que pretende ser a reprodução duma sociedade uniforme, nivelada, chata, sem relevo, e sem saliências (como a nossa incontestavelmente é) - como queria V., a menos que eu falseasse a pintura, que os meus tipos tivesses o destaque, a dissemelhança, a forte e crespa individualidade, a possante e destacante pessoalidade, que podem ter, e têm, os tipos duma vigorosa civilização como a de Paris ou de Londres? V. distingue os homens de Lisboa uns dos outros? V., nos rapazes do Chiado, acha outras diferenças que não sejam o nome e o feitio do nariz? Em Portugal há só um homem - que é sempre o mesmo ou sob a forma de dândi, ou de padre, ou de amanuense, ou de capitão: é um homem indeciso, débil, sentimental, bondoso, palrador, deixa-te ir: sem mola de carácter ou de inteligência, que resista contra as circunstâncias. É o homem que eu pinto - sob os seus costumes diversos, casaca ou batina. E é o português verdadeiro. É o português que tem feito este Portugal que vemos.
Outra coisa bem singular é V. duvidar da exactidão de certos detalhes, traços de sociedade, como as senhoras falando de criadas ou apostando dez tostõezinhos nas corridas, etc. Oh homem de Deus, onde habita V.? Em Lisboa ou em Pequim? Tudo isso é visto, notado em flagrante, e por mim mesmo aturado sur place!
Mas não palremos mais. Vocês, em todo o caso, hão-de findar por me fazer zangar. O Carlos Valbom acusa-me de escrever à francesa, e com galicismos que o arrepiam: e diz isto em períodos absolutamente construídos à francesa, e metendo em cada dez palavras cinco galicismos! V., por outro lado, nunca tomou a pena, que não fosse para cair sobre os homens e as coisas do seu tempo, com um vigor, uma veia, um espírito, um éclat que fazem sempre a minha delícia. E quando eu faço o mesmo, com mais moderação, infinitas cautelas, et une touche trés juste - você aparece-me e grita-me, "aqui-del-rei patriotas". É escandaloso. Para vocês tudo é permitido: galicismos à farta, pilhérias à pátria, à bouche que veux-tu! A mim, nada me é permitido. Ora sebo!
Positivamente, basta de cavaqueira.
Diga ao Oliveira Martins que eu lhe mando, por este correio, mais fradiquice. E Você, caro Fialho, creia sempre na sincera estima e verdadeira admiração, com que lhe aperta a mão o seu muito amigo...
Eça de Queirós »


Isto, que acabo de transcrever, respondeu Eça a Fialho, em 8 de Agosto de 1888.
Vem a propósito duma pergunta que coloquei a mim próprio: "que raio responderia o Eça ao intrépido (e ingrato) MCB?"
Suspeito bem que, em alguns trechos particularmente suculentos da carta em epígrafe, seria "quase ipsis verbis". Bastaria comutar "a sua crónica sobre Os Maias" por o "seu postal sobre a maldita Geração".


PS: Esta foi só a cortesia preliminar que corresponde ao arvorar do pavilhão.

3 comentários:

joshua disse...

Belo! Estou a acompanhar o transe!

Bem citado!

PALAVROSSAVRVS REX

Anónimo disse...

Grande farpa ! Grande Eça depois de quem as Letras Portuguesas produziram apenas escribas inferiores. Grandes são também o Miguel Castelo-Branco, do venerável Combustões, que aqui me trouxe. Já não passava pelas brasas do Dragão há algum tempo. Aproveito para o felicitar pelo belo template e pelas obras na sua casa. Bem hajam.
JNAS - http://www.ilhas.blogspot.com/

Anónimo disse...

O problema é que o sr. MCB tem razão e você não. O Eça andou a comer à conta da mesa do orçamento do estado e da mulher e assim, bem podia pregar o que quisesse, sempre de barriga cheia.
Pedro Matias
Lisboa