Mas agora que a estrada, além de campa, palco, escritório, cabine e alcova, deveio também sala de parto dos cidadãos, começa finalmente a perceber-se a estratégia formidável que presidiu à adesão europeia e, sobretudo, à torrefacção abundante dos respectivos –e generosos – fundos estruturais. Afinal, toda esta boa gente que nos vem apascentando, quando desatou a asfaltar freneticamente, não estava apenas a governar-se, a orientar-se, a tratar do seu futuro e dos seus filhos: não, ó luz da conhecimento e da cência que nos iluminas!, estava também a governar-nos, a orientar-nos, a zelar pelo nosso. Benditos sejam, todos eles, os nossos guias preclaros! Com a genialidade própria - e só ao alcance duma raça de eleitos e predestinados! -, portanto, com dedo de mestre e mira de águia, delinearam a ampla avenida do nosso porvir radioso. Eles sabiam com exactidão, com rigor de regra e esquadro, qual a solução mágica para a chusma amotinada dos nossos problemas, qual a panaceia debelante da horda indisciplinada das nossas maleitas, qual o desígnio congregante da matula desordenada das nossas aspirações: era a estrada! Ah, a estrada... esse ovo, não já sòmente de Colombo, mas de Portugal inteiro. Essa cura assombrosa, não já e apenas do nosso calcanhar de Aquilino, mas do nosso pé de atleta amnésico. A estrada, ó deuses!, pista de corrida e de dança; lusodromo para a vida e para a matança! Nunca agradeceremos o bastante. Toda a paga será pouca. Daqui por duzentos anos, tal qual hoje se cita, com nostalgia, os pais fundadores da América, sereis relembrados, em êxtase, ó padrastos e enteados asfaltadores da nacinha.
O país zanzava pelos campos, aparvalhado, a tratar das verduras, ao ritmo do sino. Atrasado e obscuro, para ali estava, ancorado, sem ir a lado nenhum. Mas eles, possuídos de filantropia inaudita, colocaram-no na estrada. Já não havia mares para navegar, horizontes para rasgar? Havia a estrada. Os avoengos gloriosos foram de barco? Nós vamos de carro. De carro, de autocarro, de ambulância, à boleia, a reboque, a penates, seja lá como for, havemos de ir. Sempre pela estrada. Tudo pela estrada, nada contra a estrada. Onde a estrada leva é irrelevante. Chame-se-lhe “progresso”, “moda”, “globalização”, “maria joaquina”, idem aspas. O importante é estar nela. Engarrafá-la e bebê-la desde bebézinho. Inalá-la desde embrião. Absorvê-la até às fímbrias mais secretas da alminha desde os testículos paternos, ao ritmo trepidante de ralis, travagens e solavancos. É ela, santa, o nosso trunfo derradeiro, a nossa descoberta capital, o climáx da nossa esplendorosa aventura colectiva. A estrada, claro está, com toda a sua plêiade de avatares magníficos – a auto-estrada, a rotunda, o viaduto, a ponte, o túnel, o nó rodoviário e até o parque subterrâneo. Será com tudo isso, com todo esse fruto maduro de atelier e estaleiro, ninguém duvide, que superaremos e ridicularizaremos toda essa estranja sobranceira, a começar nos espanhóis hediondos e a acabar nos ingleses pedantes, espantalhos escarninhos, todos eles, do nosso destino avassalador. Porque a pedra - tremei ó escórias mundiais! -, a pedra filosofal temo-la nós. A pedra e não apenas a pedra: a gravilha, o saibro, a areia, o alcatrão também. Em suma, o asfalto filosofal é nosso. Simboliza o acesso culminante à profetizada idade de Ouro, que se aproxima a olhos vistos e a passos largos. A operação hermética entrou já em estágios para-sulfurosos implacáveis. Nada poderá detê-la. Bem pode a ONU espernear, a Nato estrebuchar ou o Lóbi sionista ameaçar excomunhão. Somos um rolo compressor e vamos a caminho.
Para toda essa gente bárbara, estulta, turbopacóvia, -deixem-nos rir! - a estrada é mero equipamento estrutural. Nós, porém, com mil anos de avanço, descobrimos que a estrada é a essência: a essência do país e do povo - a fusão sublime de ambos ao assalto do futuro. Para os ignaros das obras verdadeiramente públicas, cães infiéis todos eles, a estrada banaliza-se, servindo de mero tapete utilitário para o transporte entre a habitação e as funcionalidades económicas e sociais. Mas nós, que há muito voamos nela regularmente, sabemos que, bem mais que tapete utilitário, ela é tapete voador, trampolim para o Céu e arredores; portal de embarque astronáutico, não raramente. Lá está, senhores: enquanto eles se metem à estrada para ir a algum sítio banal das suas vidinhas programadas, nós, regalo vivo de Deus e dos anjos, metemo-nos nela para ir ao Céu e voltar (salvo a meia dúzia diária de excêntricos que por lá se instala, trocando o turismo pela colonização). Aliás, nem é correcto dizer-se que nos metemos nela: estamos nela. Vivemos nela. Cavalgamo-la com todas as nossas forças e paixões. Metemo-nos é, isso sim, se bem que cada vez mais esporadicamente, em casas, repartições, fábricas, estádios, escritórios, oficinas, escolas, etc... Mas apenas como meros intersticios dela. Intervalamos apenas para remuniciar as ganas e cevar os apetites. Todos esses equipamentos e mobiliários tão essenciais para os outros, servem-nos a nós como vagos pretextos para lá viver. Na estrada. Entregues às nossas cosmonáuticas.
Mas ir ao Céu não basta. O nosso espírito irrequieto e faminto de glória quer sempre mais, e os nossos líderes são jóqueis esplêndidos, autênticas carraças do nosso espírito fogoso. Por isso, além de nos utilizarmos da estrada para ir ao Céu, vamos agora, através dela, e regidos por eles, trazer o Céu à terra. O paraíso, qual esfinge óbvia, sempre esteve diante do homem. Mas só um país cozido e assado com a estrada poderia decifrar o enigma. E o paraíso é a estrada. Não só conduz ao paraíso: é já o paraíso.
Os outros, povos incuravelmente estúpidos, não me canso de proclamar, entendem que o paraíso se constrói à volta da estrada: com escolas, hospitais, fábricas, complexos de diversão fabulosos, etc,etc, tudo isso funcionando na perfeição do melhor dos mundos. Ora, o melhor dos mundos, todos sabemos, não existe fora da estrada. Todos esses belos projectos, todas essas legolândias para adultos infantilizados dão, invariavelmente, com os burros, uns na água e outros, o que é pior ainda, na administração. Em nome do paraíso, acaba tudo, por sina, no inferno da corrupção, do espólio e do locupletanço. É tempo perdido
Deixá-los, nessas maluqueiras e tricôs do absurdo alinhavado a embuste. Graças à locomotiva da nossa audácia, movida a carvão da nossa descoberta, vamos ultrapassá-los sem dó nem piedade e deixá-los para trás sem remissão.
Senão, atente-se: eles ainda precisam duma série de equipamentos e próteses supérfluas para viverem e existirem. Fatal contrapeso, âncora funesta, pobres analfabetos rodoviários! Para nascerem, precisam de maternidades; para se tratarem, precisam de hospitais; para se divertirem, precisam de teatros, cinemas, estádios e outros estábulos que tais; para rezarem, precisam de igrejas ou jornais; para aprenderem, precisam de escolas e universidades; para moverem guerras, precisam de inventar inimigos; para aterrorizarem a população, precisam de importar terroristas; para trabalharem, precisam de empregos; para comunicarem, precisam de telefones, computadores, correios. Toda esta traquitana dispendiosa e problemática lhes é indispensável. Observe-se, de resto, o duplo e descomunal embaraço: necessitam, por um lado, que toda aquela tralha exista; e depois, mais difícil ainda, necessitam que tudo aquilo funcione.
Pois bem, os portugueses, vanguarda destacadíssima da humanidade, emanciparam-se de todos estes sarilhos, empecilhos, cangas e preconceitos. Prescindiram de muletas e andarilhos. E, com a solenidade dos decretos transcendentes, preparam-se para enviar o restante mundo dito avançado para o aterro sanitário da sucata histórica e do ferro-velho socio-económico.
De que forma? As fórmulas simples são as mais letais. Assim, o português actual, o português anónimo, sempre que precisa de nascer, de tratar-se, divertir-se, aprender, rezar, comunicar, conviver, dar batalha, aterrorizar, telefonar, procriar, procurar emprego, trabalhar, ou que quer que seja, nem hesita: vai prá estrada. Já ganhou insígnias de instinto.
Aos antigos hebreus Deus enviou o Maná. A nós deu-nos a estrada. Ora, ao contrário dos campos, tantas vezes ásperos e ingratos, em boa hora largados às moscas, a estrada dá tudo. É duma fertilidade cornucópica. Deve ser da cor. Abençoados sejam os nossos pastores e profetas!
O país zanzava pelos campos, aparvalhado, a tratar das verduras, ao ritmo do sino. Atrasado e obscuro, para ali estava, ancorado, sem ir a lado nenhum. Mas eles, possuídos de filantropia inaudita, colocaram-no na estrada. Já não havia mares para navegar, horizontes para rasgar? Havia a estrada. Os avoengos gloriosos foram de barco? Nós vamos de carro. De carro, de autocarro, de ambulância, à boleia, a reboque, a penates, seja lá como for, havemos de ir. Sempre pela estrada. Tudo pela estrada, nada contra a estrada. Onde a estrada leva é irrelevante. Chame-se-lhe “progresso”, “moda”, “globalização”, “maria joaquina”, idem aspas. O importante é estar nela. Engarrafá-la e bebê-la desde bebézinho. Inalá-la desde embrião. Absorvê-la até às fímbrias mais secretas da alminha desde os testículos paternos, ao ritmo trepidante de ralis, travagens e solavancos. É ela, santa, o nosso trunfo derradeiro, a nossa descoberta capital, o climáx da nossa esplendorosa aventura colectiva. A estrada, claro está, com toda a sua plêiade de avatares magníficos – a auto-estrada, a rotunda, o viaduto, a ponte, o túnel, o nó rodoviário e até o parque subterrâneo. Será com tudo isso, com todo esse fruto maduro de atelier e estaleiro, ninguém duvide, que superaremos e ridicularizaremos toda essa estranja sobranceira, a começar nos espanhóis hediondos e a acabar nos ingleses pedantes, espantalhos escarninhos, todos eles, do nosso destino avassalador. Porque a pedra - tremei ó escórias mundiais! -, a pedra filosofal temo-la nós. A pedra e não apenas a pedra: a gravilha, o saibro, a areia, o alcatrão também. Em suma, o asfalto filosofal é nosso. Simboliza o acesso culminante à profetizada idade de Ouro, que se aproxima a olhos vistos e a passos largos. A operação hermética entrou já em estágios para-sulfurosos implacáveis. Nada poderá detê-la. Bem pode a ONU espernear, a Nato estrebuchar ou o Lóbi sionista ameaçar excomunhão. Somos um rolo compressor e vamos a caminho.
Para toda essa gente bárbara, estulta, turbopacóvia, -deixem-nos rir! - a estrada é mero equipamento estrutural. Nós, porém, com mil anos de avanço, descobrimos que a estrada é a essência: a essência do país e do povo - a fusão sublime de ambos ao assalto do futuro. Para os ignaros das obras verdadeiramente públicas, cães infiéis todos eles, a estrada banaliza-se, servindo de mero tapete utilitário para o transporte entre a habitação e as funcionalidades económicas e sociais. Mas nós, que há muito voamos nela regularmente, sabemos que, bem mais que tapete utilitário, ela é tapete voador, trampolim para o Céu e arredores; portal de embarque astronáutico, não raramente. Lá está, senhores: enquanto eles se metem à estrada para ir a algum sítio banal das suas vidinhas programadas, nós, regalo vivo de Deus e dos anjos, metemo-nos nela para ir ao Céu e voltar (salvo a meia dúzia diária de excêntricos que por lá se instala, trocando o turismo pela colonização). Aliás, nem é correcto dizer-se que nos metemos nela: estamos nela. Vivemos nela. Cavalgamo-la com todas as nossas forças e paixões. Metemo-nos é, isso sim, se bem que cada vez mais esporadicamente, em casas, repartições, fábricas, estádios, escritórios, oficinas, escolas, etc... Mas apenas como meros intersticios dela. Intervalamos apenas para remuniciar as ganas e cevar os apetites. Todos esses equipamentos e mobiliários tão essenciais para os outros, servem-nos a nós como vagos pretextos para lá viver. Na estrada. Entregues às nossas cosmonáuticas.
Mas ir ao Céu não basta. O nosso espírito irrequieto e faminto de glória quer sempre mais, e os nossos líderes são jóqueis esplêndidos, autênticas carraças do nosso espírito fogoso. Por isso, além de nos utilizarmos da estrada para ir ao Céu, vamos agora, através dela, e regidos por eles, trazer o Céu à terra. O paraíso, qual esfinge óbvia, sempre esteve diante do homem. Mas só um país cozido e assado com a estrada poderia decifrar o enigma. E o paraíso é a estrada. Não só conduz ao paraíso: é já o paraíso.
Os outros, povos incuravelmente estúpidos, não me canso de proclamar, entendem que o paraíso se constrói à volta da estrada: com escolas, hospitais, fábricas, complexos de diversão fabulosos, etc,etc, tudo isso funcionando na perfeição do melhor dos mundos. Ora, o melhor dos mundos, todos sabemos, não existe fora da estrada. Todos esses belos projectos, todas essas legolândias para adultos infantilizados dão, invariavelmente, com os burros, uns na água e outros, o que é pior ainda, na administração. Em nome do paraíso, acaba tudo, por sina, no inferno da corrupção, do espólio e do locupletanço. É tempo perdido
Deixá-los, nessas maluqueiras e tricôs do absurdo alinhavado a embuste. Graças à locomotiva da nossa audácia, movida a carvão da nossa descoberta, vamos ultrapassá-los sem dó nem piedade e deixá-los para trás sem remissão.
Senão, atente-se: eles ainda precisam duma série de equipamentos e próteses supérfluas para viverem e existirem. Fatal contrapeso, âncora funesta, pobres analfabetos rodoviários! Para nascerem, precisam de maternidades; para se tratarem, precisam de hospitais; para se divertirem, precisam de teatros, cinemas, estádios e outros estábulos que tais; para rezarem, precisam de igrejas ou jornais; para aprenderem, precisam de escolas e universidades; para moverem guerras, precisam de inventar inimigos; para aterrorizarem a população, precisam de importar terroristas; para trabalharem, precisam de empregos; para comunicarem, precisam de telefones, computadores, correios. Toda esta traquitana dispendiosa e problemática lhes é indispensável. Observe-se, de resto, o duplo e descomunal embaraço: necessitam, por um lado, que toda aquela tralha exista; e depois, mais difícil ainda, necessitam que tudo aquilo funcione.
Pois bem, os portugueses, vanguarda destacadíssima da humanidade, emanciparam-se de todos estes sarilhos, empecilhos, cangas e preconceitos. Prescindiram de muletas e andarilhos. E, com a solenidade dos decretos transcendentes, preparam-se para enviar o restante mundo dito avançado para o aterro sanitário da sucata histórica e do ferro-velho socio-económico.
De que forma? As fórmulas simples são as mais letais. Assim, o português actual, o português anónimo, sempre que precisa de nascer, de tratar-se, divertir-se, aprender, rezar, comunicar, conviver, dar batalha, aterrorizar, telefonar, procriar, procurar emprego, trabalhar, ou que quer que seja, nem hesita: vai prá estrada. Já ganhou insígnias de instinto.
Aos antigos hebreus Deus enviou o Maná. A nós deu-nos a estrada. Ora, ao contrário dos campos, tantas vezes ásperos e ingratos, em boa hora largados às moscas, a estrada dá tudo. É duma fertilidade cornucópica. Deve ser da cor. Abençoados sejam os nossos pastores e profetas!
E reparem, mesmo para nos informarmos, trabalheira sinuosa em que os outros requerem, em permanência e à cabeceira, uma chusma de jornais, rádios, televisões, mais as respectivas catervas lalofrénicas de comentadores, explicadores, logotrituradeiras, enfardadores mecânicos e demais corujas empalhadas ou leitores da bola de cristal, pois, mesmo aí, nesse entulhado e rilhafolesco labirinto, o português resolve e descomplica, duma só penada genial: sim, vai para a estrada. Só que vai de táxi.
Ou de blogue.
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