Falarei, em seguida, do exagero.
Pois bem, o leitor exagera quando proclama e decreta, logo de chofre: «O mal desta merda tambem é os gajos que teem muita prosa mas passam o dia com o cu sentado no banquinho a falar mal de tudo e de todos».
E, repare, exagera em dois sentidos: 1. quando diz que "têm muita prosa" - é claramente um exagero, porque muita prosa tinha o Dostoievski, muita e boa -; e 2. quando deduz que "falam mal de tudo e de todos" - exorbita nitidamente, como lhe passarei a demonstrar.
Em primeiro lugar, nunca aqui, que me lembre, falei mal, a não ser que se refira àquelas caralhadas, conas da tia, putas que pariu e demais pirotecnias vernaculares indispensáveis a qualquer português genuíno. (Como deve saber, o português paradigmático inteiro é constituído por duas metades: um Bocage no hemisfério esquerdo e um Agostinho Macedo no direito. Exemplo mais aproximado que eu dificilmente encontrará em lugar algum.) Mas decerto não se refere a essa artilharia gráfica que alguns enfezados literários, todos abstémios e assépticos, taxam de coprolalia. Refere-se, outrossim, na sua áspera invectiva, se bem o vislumbro, ao acto de menoscabar, caluniar, insidiar, vituperar alguém ou alguma coisa. Coisa que, far-me-á a justiça, também nunca aqui perpetrei: caluniar, desdenhar ou menoscabar é um tipo chamar excremento a um palácio. Ora, o que eu faço é, sempre que se me depara, chamar excremento a um excremento. Não procuro dizer mal: procuro dizer a realidade. Tenho culpa que o esterco pulule em cornucópia? Preferia talvez que eu chamasse palácio ao excremento? Lamento, mas nem em acto nem em potência. Nem nas fábulas, sequer, me lembro de alguma vez qualquer fada madrinha ter operado a partir de fezes sólidas. Abóboras, ratinhos, peças de frutas, ainda vá lá, mas bosta humana é que não.
Além disso, o meu cuidado, fará a fineza de concordar, não se tem limitado ao rigor no retrato ou à veracidade na reportagem: também tem primado pela adequação na atitude. Aos dejectos, sociais ou políticos, tiro-lhes o retrato, não me rebolo com eles. Sobretudo, faço por não cair numa figura muito patética que por aí se pratica: gente zangada, desgrenhada, vocifeirante, a apontar excrementos em toda a parte (o que não é difícil, porque de facto eles abundam se é que não formiguejam), porém, sem tento nem tino, a ralhar e a barafustar à desfilada, do alto de pedestais de virtude onde entrevemos, por entre os clarões e negrumes da borrasca, reedições em calças da Titi do Raposão. Até já vi tipos adultos, presumo, a desafiarem cagalhões para a porrada; outros, positiva e quase ininterruptamente, engalfinhados neles, numa zaragata homérita que só visto. Sujamente visto, neste caso. É triste. Nessas romarias não me meto. Se aponto um excremento, em poltrona ou altar, é para me rir dele. Para nos rirmos, eu e os que comigo gargalham. E quanto mais adorado, mais idolatrado e campeão da Jet-seita, mais riso merece. Mas a boa distância, de largo, que o alcance da pestilência não é pequeno. E sabendo que é sempre preciso redobrada atenção, não se vá descarrilar no bizantinesco caso da ralhadela desarvorada ao dejecto mais não soar que àquela velha e típica frase: "está verde, não presta, só os cães o podem tragar!"
Por conseguinte, ó caro leitor, exagerou bestialmente: nem digo mal, nem mal de tudo e muito menos de todos. Ao contrário de si, que, logo por azar, veio acusar-me de maledicância num postal em que eu bem-dizia os grandes das nossas letras em justo contraponto aos excrementos da nossa praça. Atarantado com um barrote, largou a recriminar-me um cisco. É certo que ainda tentou atenuar a coisa, em jeito de compensação, quando me amnistiou metade da pena, condenando-me apenas a passar aqui o dia. Agradeço-lhe ter-me poupado a noite, mas, mesmo assim, é exíguo como indemnização.
No postal seguinte, finalmente, procederei à autópsia do mistério.
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