(...)a repressão só faz sentido e encontra razão de ser quando se sustenta no algo que é reprimido: se esse algo desaparecer é também a repressão que se desvanece. Até porque dizer “a repressão” como se esta existisse per si, num estado puro e separado de quaisquer relações, tipo “primeiro motor imóvel”, não faria qualquer sentido. A repressão, de facto, existe enquanto desempenho. Pressupõe, tanto quanto algo ou alguém que é reprimido, também algo ou alguém que é repressor. Ora, sendo a sua posição (dela, repressão) essencialmente parasitária, pode engrandecer-se, desmesurar-se, mas não autonomizar-se através da eliminação ou absorção total do hospedeiro. Aliás, não só isso comprovadamente não acontece, como se processa até um singular intercâmbio: na medida em que recrudesce, o parasita estimula o hospedeiro a que não esmoreça. Quer dizer, a repressão estatal fortalece-se e perpetua-se pela bestialização compulsiva e reincidente dos cidadãos. É preciso que eles sejam cada vez mais “livres”, “licenciados” e “desculpáveis” –ou seja: "selvagens" – para que, também ela, a repressão, se desenvolva, burile e engorde. Como na permuta entre a águia de Zeus e o fígado de Prometeu. O chicote do domador mede-se pela bravura da fera. Neste ponto, convenha-se, irrompe a nossa divergência frontal com Freud: a civilização ocidental, menos ainda no seu estágio actual, não progride segundo um aprofundar do sentimento de culpa, mas, ao contrário, pela desobstrução do seu sentimento de irresponsabilidade. Para isso se desembaraçou do Cosmos, da Natureza sacra, de Deus e de tudo o que lhe causasse entraves. De cada vez que se viu livre dum desses empecilhos, a aceleração no progresso foi nítida. Estivesse certa a tese freudiana, e teria sido, necessariamente, o contrário. De resto, o desavagamento principal na história da civilização tem sido precisamente o dos factores de culpa, enquanto, como já anteriormente deixámos bem exposto, factores de ligação a um fundamento exo-material. O que nos transporta a outra consideração útil: é que aquilo que se chama progresso, no Ocidente, corresponde a uma forma específica e exclusiva de progresso – o progresso material. E basta lembrarmos a civilização grega, essa idade de ouro da cultura, para constatarmos, amargamente, que esse progresso material, invariavelmente, se fez acompanhar dum retrocesso –parte incultivo, parte corrupção–, espiritual. Assim, mais que nítidos, tornam-se compreensíveis certos contornos aberrantes do nosso tempo: tecnologia de ponta nas unhas de Cro-Magnons. Um homem, por fora, epidermicamente, cada vez mais limpo, perfumado, sofisticado e equipado; mas por dentro, mentalmente, cada vez mais imundo, selvagem, embrutecido e incivilizado. Um homem que, dir-se-ia, na medida em que mais humaniza o mundo, mais se desumaniza a si próprio. Cite-se, a título de exemplo, o seguinte episódio anedótico: Quando, em pleno idílio hippie, se arvora o manifesto duma contra-cultura está apenas a levar-se uma farsa a píncaros inauditos – é que a cultura contra a qual a juventude - enfastiada e dispéptica - do flower power se erguia era já de si uma forma industrial de contra-cultura. Não tardaram a entender-se e abraçar-se. Afinal, os jovens só pediam uma aceleração no processo. E tiveram-no. Dez, vinte anos depois, são já eles, ao volante do bólide neo-liberal quem conduz a infâmia e galopa a selvajaria, com requintes e desprezos de fazer corar pais e avós.
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