segunda-feira, março 06, 2006

A Genealogia do Matadouro - III. América: O espeto e a Cruz



Relato de Hans Staden, um mercenário alemão ao serviço da coroa portuguesa, após um estágio de cativo entre uma tribo canibal (do qual, pelos vistos, escapou miraculosamente cru e não esquartejado):
«O executor volta a pegar na moca, aproxima-se do prisioneiro e diz-lhe: “Aqui estou! Venho para te matar; porque os teus mataram e devoraram um grande número dos meus.” O prisioneiro responde-lhe: “Quando eu morrer, os meus amigos vingar-me-ão.” No mesmo instante o executor vibra-lhe um golpe na cabeça, que faz saltar os miolos. As mulheres apoderam-se então do corpo, arrastam-no para o fogo, esfregam-lhe a pele para a lavar, e metem-lhe um pau no traseiro para que nada se perca. Quando a pele está bem esfregada, um homem corta os braços e as pernas acima do joelho. Quatro mulheres apoderam-se dos seus membros e começam a correr à volta das cabanas, soltando grandes gritos de alegria. A seguir abrem-no pelas costas, e dividem os bocados. As mulheres ficam com as entranhas a que chamam mingau, que dividem com as crianças; devoram também as entranhas, a carne da cabeça, os miolos e a língua; as crianças comem o resto. Assim que tudo acaba, cada um agarra no seu bocado e regressa a casa; o executor acrescenta um nome ao seu, e o chefe traça-lhe uma linha no braço com o dente de um animal selvagem. Quando a ferida sarar, a marca continuará a ver-se, e eles olham esta cicatriz como um sinal de honra...Vi todas estas cerimónias e assisti a elas.»
- J-.P. Duviols, “L'Ámerique espagnole vue et rêvée

«O canibalismo, como se vê, dá matéria para uma alegoria da América. Porque ele está em todo o lado: à medida que os conquistadores acentuam a sua penetração no continente, descobrem cada vez mais tribos antropófagas e a América, de efémero paraíso terrestre que tinha aos olhos de Colombo, torna-se, a despeito dos seus esplendores e por via da forte atracção que continua a exercer sobre os recém-chegadoas, uma espécie de inferno povoado por demónios sanguinários que só pensam em se entredevorar.
Foi esse incontestavelmente o sentimento de Cortez e dos seus companheiros quando abordaram as costas do império Azteca. Logo à sua passagem em Cozumel descobriram no alto das pirâmides maias os altares onde se praticavam os sacrifícios humanos e recolheram pouco depois, em Zempoalla, Tlaxcala, da própria boca das populações submetidas, os primeiros testemunhos sobre o terrível imposto de sangue. Ao capitão espanhol não foram oferecidos, entre os presentes que lhe mandou o imperador Moctezuma para o acolher (mas sobretudo para o pôr à prova) alguns nacos de carne humana? Não sentiu toda a tropa desagradáveis arrepios quando, fazendo a sua entrada solene em Tenochtilan no meio da multidão, viu ao longo das plataformas os alinhamentos de crânios espetados nos tzompantlis? Desde há alguns lustros, a “guerra florida” –cujo objectivo confessado era o de cobrar ao inimigo o sangue precioso destinado ao Sol – tornara-se o pilar do império Méxica. Cavaleiros-águias e cavaleiros-jaguares deviam entregar aos sacerdotes um número crescente de vítimas, porque os deuses tinham uma sede terrível. Os cronistas contam que, em 1487, aquando da inauguração do templo Mayor, houve sacrifícios ininterruptos durante quatro dias, do nascer ao pôr do sol. Teria havido, segundo Torquemada, 72 344 vítimas, mais de 80 000 segundo as estimativas de Durán e de Ixtilxochitil, só 20 000 para Acosta; número enorme, em qualquer caso, mas que dá uma fraca ideia das exigências reais de um ritual constantemente renovado, em nome do qual se sacrificava de verdade, sem fazer contas.
Desculpam-se tanto mais facilmente o medo dos espanhóis quando alguns deles, feitos prisioneiros, foram executados diante dos olhos dos seus companheiros de armas durante o cerco a México. Um medo sem paralelo com o terror que reinava entre as populações submetidas, porque os aztecas tinham elevado a morte-espectáculo à condição de sistema de governo.»
- Bernard Fouques, “História Inumana”

Por um lado, estes “bons selvagens” deixam a fantasia de Rousseau um tanto ou quanto maltratada. E é pena, porque não deixa de ser uma tese enternecedora que ainda hoje em dia comove muitas almas sensíveis da paróquia. Mas, mesmo para estômagos tão tolerantes e indulgentes quanto os nossos, uma antropofagocracia é um bocado intragável. Por outro, a sua selvajaria - sobretudo glutona- não deixava de ser providencial, especialmente para os galhardos espanhóis que, bons crentes no amor ao próximo, ardorosos paladinos da verdadeira fé, trataram de desembaraçar-se o quanto antes de quaisquer escrúpulos ou humanitarismos, e desataram numa selvajaria ainda maior. É uma lei antiga e recorrente: para acabar com um Terror só um Super-terror. Las Casas, um pregador escandalizado com tão generosas violências dos seus compatriotas, deixou-nos um relatório famoso. «Preocupado em apresentar um catálogo completo, não hesita em repetir incansavelmente os mesmos abusos cometidos de uma expedição a outra: mulheres esventradas, recém-nascidos arrancados às suas mães, precipitados dos rochedos, afogados nos rios, homens espetados em grupos de treze e queimados vivos, em honra de Cristo e dos seus apóstolos, vítimas atrozmente mutiladas como exemplo, todas as cenas ilustradas por De Bry (...) Por vezes, parecendo aliviar o seu cerco, ele dedica-se a descrever o repouso do guerreiro: um, regressado de uma caçada de mãos a abanar, não encontra outro exutório senão saciar o apetite dos seus cães com a carne de uma criança que cortou aos bocados para o efeito; outro dedica-se a engravidar as índias que possui para obter um melhor preço no mercado de escravos. Presente em todas as páginas, o horror deixa subitamente de ser gratuito. Ele serve para denunciar a “tirania” dos espanhóis, ou seja os abusos de poder cometidos por eles contra toda a justiça, assim como a sua insaciável cupidez: dois vícios muito graves na época.»
- Bernard Fouques, idem
Para os apreciadores de números, no fim da "Conquista", estima-se entre 30 e 70 milhões o número de vítimas índias da mesma. Tratando-se de vítimas de segunda, senão terceira, categoria, o número, como é usual em assuntos históricos, está aberto a discussão e investigação.
Para a história fica o engenho e a arte com que nuestros hermanos praticamente varreram Aztecas, Incas e Maias da superfície do planeta.
Escusado será dizer que o relatório de Las Casas, em pouco amenizou as penas dos indígenas. Uma vez publicado, apenas serviu como munição e pretexto aos inimigos de Espanha, na época (Franceses, Ingleses, Holandeses et al) para, por seu turno, justificarem as suas pressurosas atrocidades contra os súbditos de Suas Católicas Majestades, bem como a bondade na urgência das mesmas. No seu lado negro, a civilização nunca deixou de ser uma corrida. Só que, nesse caso, à desumanização.

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