«Chigalev continuou então o seu discurso:
- Tendo consagrado toda a minha energia ao estudo da organização da sociedade futura, que virá substituir o estado de coisas actual, cheguei à conclusão de que todos os autores de sistemas sociais, começando pelos antigos até ao nosso ano de graça de 187..., não passam de uns fantasistas, de uns tolos que se contradizem e não compreendem nada de ciências nem deste animal estranho que se chama homem. Platão, Rousseau, Fourier, tudo isso é bom para os pardais e não para uma sociedade humana. Como, porém, é necessário definir esta nova forma de sociedade neste momento em que nos preparamos para entrar em acção, proponho o meu sistema de reorganizar o Mundo. Aqui está -disse, batendo com o punho sobre o caderno. - Gostaria de espor o resumo do seu conteúdo perante esta assembleia, mas sei que teria de acrescentar várias explicações verbais; a exposição não poderia ser feita em apenas dez noites, conforme o número de capítulos. (Ouvem-se risos.) Quero, além disso, declarar já que a minha obra ainda não está concluída. (Novas risadas.) Embaracei-me com os elementos colhidos e as conclusões estão em oposição com a ideia inicial: comecei pela liberdade absoluta e cheguei a um absoluto despotismo. Acrescentarei, todavia, que fora da minha solução a sociedade não pode achar outra fórmula.
- Tendo consagrado toda a minha energia ao estudo da organização da sociedade futura, que virá substituir o estado de coisas actual, cheguei à conclusão de que todos os autores de sistemas sociais, começando pelos antigos até ao nosso ano de graça de 187..., não passam de uns fantasistas, de uns tolos que se contradizem e não compreendem nada de ciências nem deste animal estranho que se chama homem. Platão, Rousseau, Fourier, tudo isso é bom para os pardais e não para uma sociedade humana. Como, porém, é necessário definir esta nova forma de sociedade neste momento em que nos preparamos para entrar em acção, proponho o meu sistema de reorganizar o Mundo. Aqui está -disse, batendo com o punho sobre o caderno. - Gostaria de espor o resumo do seu conteúdo perante esta assembleia, mas sei que teria de acrescentar várias explicações verbais; a exposição não poderia ser feita em apenas dez noites, conforme o número de capítulos. (Ouvem-se risos.) Quero, além disso, declarar já que a minha obra ainda não está concluída. (Novas risadas.) Embaracei-me com os elementos colhidos e as conclusões estão em oposição com a ideia inicial: comecei pela liberdade absoluta e cheguei a um absoluto despotismo. Acrescentarei, todavia, que fora da minha solução a sociedade não pode achar outra fórmula.
Os risos aumentavam cada vez mais, principalmente da parte dos jovens. O rosto da senhora Virguinski, o de Liputine, o do coxo reflectiam uma espécie de despeito.
- Se o senhor não conseguiu elaborar o seu sistema, se chegou a uma decepção, que quer que a gente faça? - observou prudentemente um dos oficiais.
- Tem razão - respondeu Chigalev, em tom categórico. - Em especial quanto ao emprego da palavra "decepção". Sim, cheguei a ela e contudo o que exponho no meu livro é justo. Não há outra saída, ninguém será capaz de a inventar! É por isso que me apresso a convidar a sociedade a escutar o meu trabalho durante dez noites consecutivas e a exprimir em seguida a sua opinião. Se não querem ouvir, separamo-nos já. Os homens voltarão aos seus negócios, as mulheres aos seus afazeres domésticos, pois que, rejeitando o meu livro, repito que não há outra saída. Ne-nhu-ma! E se se perde o tempo, prejudica-se a causa comum, porque se voltará inevitavelmente ao mesmo sistema!
A reacção foi diversa. Houve quem perguntasse com os seus botões: «O homem estará doido?»
- Em resumo, tudo se reduz à decepção experimentada por Chigalev - concluiu Liamchine. - A questão primordial é de saber se sim ou não ficamos decepcionados.
- A decepção de Chigalev é assunto pessoal - declarou o aluno do liceu.
- Proponho que se vote para saber a que ponto a decepção de Chigalev está relacionada com a causa comum e ao mesmo tempo escutar ou não - lembrou o oficial, irónico.
- Se o senhor não conseguiu elaborar o seu sistema, se chegou a uma decepção, que quer que a gente faça? - observou prudentemente um dos oficiais.
- Tem razão - respondeu Chigalev, em tom categórico. - Em especial quanto ao emprego da palavra "decepção". Sim, cheguei a ela e contudo o que exponho no meu livro é justo. Não há outra saída, ninguém será capaz de a inventar! É por isso que me apresso a convidar a sociedade a escutar o meu trabalho durante dez noites consecutivas e a exprimir em seguida a sua opinião. Se não querem ouvir, separamo-nos já. Os homens voltarão aos seus negócios, as mulheres aos seus afazeres domésticos, pois que, rejeitando o meu livro, repito que não há outra saída. Ne-nhu-ma! E se se perde o tempo, prejudica-se a causa comum, porque se voltará inevitavelmente ao mesmo sistema!
A reacção foi diversa. Houve quem perguntasse com os seus botões: «O homem estará doido?»
- Em resumo, tudo se reduz à decepção experimentada por Chigalev - concluiu Liamchine. - A questão primordial é de saber se sim ou não ficamos decepcionados.
- A decepção de Chigalev é assunto pessoal - declarou o aluno do liceu.
- Proponho que se vote para saber a que ponto a decepção de Chigalev está relacionada com a causa comum e ao mesmo tempo escutar ou não - lembrou o oficial, irónico.
- Não é isso - interveio o coxo. Costumava acompanhar as palavras com um riso escarninho, de modo que era difícil concluir se falava a sério ou se estava a brincar. - Não é isso. O senhor Chigalev mostra muita devoção pela sua obra e também muita modéstia. Conheço o livro dele. propõe como solução final dividir a sociedade em duas partes desiguais. Um décimo dela gozará da liberdade pessoal e terá o direito de domínio absoluto sobre os nove décimos restantes. Estes devem perder a sua individualidade para se transformarem numa espécie de rebanho. A obediência cega conduzi-los-á de transformação em transformação até à inocência primitiva, no género de paraíso terrestre, se bem que fiquem obrigados a trabalhar. Os meios que o autor nos apresenta para arrancar aos nove décimos da humanidade o seu livre arbítrio e os transformar em seguida num rebanho como processo de reeducação de gerações inteiras, são deveras notáveis. Baseados no estudo de elementos naturais, têm perfeita lógica. Pode-se não estar de acordo com certas conclusões do autor, o que não se pode é duvidar da sua inteligência e do seu saber. É pena que a cláusula das dez sessões seja incompatível com as circunstâncias; doutro modo, poderíamos ter ensejo de aprender muitas coisas interessantes.
- Isso é verdade? - perguntou a senhora Virguinski, um tanto inquieta. - Este homem, como não sabia o que fazer do povo, reduziu-o em nove décimos à escravidão. Há muito tempo que eu desconfiava disso.- Refere-se ao seu irmão? - volveu o coxo, admirado.
- São parentes? Estão a troçar de nós?
- E além disso -acudiu a estudante - trabalhar para os aristocratas e obedecer-lhes como se fossem deuses é uma cobardia.
- O que proponho não é cobardia, mas um verdadeiro paraíso terreal. Não pode haver outro - retrucou Chigalev, com autoridade.
- Quanto a mim - disse Liamchine -, em lugar do paraíso eu teria dado cabo desses nove décimos, se não se sabe o que se há-de fazer deles; e conservaria à face da terra um grupo de pessoas instruídas, capazes de organizar a sua vida segundo os termos da ciência.
-Só um lobo é que pode falar assim - disse a estudante.- É um lobo, mas um lobo útil! - segredou-lhe a senhora Virguinski.
- E essa seria talvez a melhor solução! - retorquiu Chigalev prontamente, voltando-se para Liamchine. - nem calcula que ideia profunda conseguiu exprimir, senhor chocarreiro! Mas como a sua ideia é pouco mais ou menos irrealizável, temos de nos contentar com o paraíso terreal, já que assim o designámos.
- Que súcia de disparates! - comentou Verkovenski, ainda ocupado a cortar as unhas e sem levantar os olhos.- Disparates, porquê? - replicou o coxo, como se estivesse à espera desta frase para entabular discussão. - O senhor Chigalev é evidentemente um fanático da filantropia; mas lembre-se que se encontra em Fourier, em Cabet, e até em Proudhon, grande quantidade de soluções das mais despóticas e fantásticas. O senhor Chigalev propõe-nos uma solução mais prática. Depois de ler o seu livro, não se pode deixar de concordar com certas coisas que lá vêm. Talvez ele esteja mais próximo da realidade do que qualquer outro! O seu paraíso terrestre é quase igual àquele que a humanidade perdeu, se é que existiu.»
- Dostoievski, "Os Demónios"
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