terça-feira, agosto 14, 2007

O Não Deus - III. Arqueologias

Em 399 a.C., Sócrates é julgado no tribunal dos Heliastas. A acusação, conforme nos transmitiu Diógenes Laércio, consiste, sumariamente, em dois quesitos: "Sócrates é culpado de não acreditar nos deuses em que acredita a cidade"; e também de "corromper a juventude". Pede-se a pena de morte.
Das peripécias do julgamento e, sobretudo, da defesa de Sócrates, existe um extraordinário texto de Platão - "Apologia de Sócrates" -, que vale sempre a pena ler. Todavia, não é a questão da justiça ou da injustiça do processo e da sentença, ou, tão pouco, a culinária de intrigas envolvente, o que aqui nos traz. Sócrates, como bem sabemos, bebeu a cicuta e inaugurou a galeria de mártires da filosofia.
Não; o interessante é constatar que estamos num daqueles momentos de crise -eventualmente, um dos primeiros na civilização europeia - em que, de certa forma, a tradição e a "modernidade" se confontam.
Disso mesmo, já Aristófanes, 24 anos antes, dera eloquente sinal aquando da primeira encenação de "As Nuvens". Aí, Sócrates é alistado nas hostes sofistas e serve de porta-bandeira a todo um activo apostolado de hábitos, costumes e, sobremaneira, lógicas "modernas". Atentemos nas características desta proto-modernidade, segundo Aristófanes...

1. A impiedade, onde o ateísmo se deriva duma estreita fenomenologia:

«Estrepsíades - "(...)Faz o preço que entenderes, que eu te pagarei, juro pelos deuses!..."
Sócrates - Pelos deuses!...Quais deuses!... Para já, deuses é moeda que não usamos cá na casa
(...)
« Estréps. - "Mas... então e Zeus... vejamos... c'um raio! Então Zeus Olímpico não é deus?
Sócrates - Qual Zeus nem meio Zeus!... Não digas asneiras: pura e simplesmente, Zeus não existe
(...)
Sócrates - Ora bem: estás então disposto, de agora em diante, a não aceitar qualquer outra divindade que não sejam as nossas, isto é, o Caos, as Nuvens e a Língua, estas três e só estas?

2. A "lógica mecânica" (antepassada da ratio escolasta) como arma ofensiva duma retórica manhosa, oportunista, psicotécnica e persuasiva:

«Sócrates - Ora bem: fala-me tu mesmo do teu próprio carácter, que é para eu, depois de ver como ele é, mandar avançar contra ti uma maquinaria (mhecanon) cá das minhas.»


3. A vocação revolucionária, demagógica, transgressiva, reeducadora, perversora, hedonista, individualista - de que logramos especial montra na memorável logomaquia entre o "raciocínio justo" e o "raciocínio injusto". Poderia aqui citá-lo de fio a pavio, mas, por economia de espaço, condenso nalguns trechos mais elucidativos:

a) «Raciocínio Justo - Dar cabo de mim, tu? Quem julgas tu que és?
Raciocínio Injusto - Um raciocínio.
Raciocínio Justo - Sim, mas o mais fraco.
R.I. - Pois venço-te na mesma, lá por te gabares de ser o mais forte.
R.J. - E com que artimanhas?
R.I. - Inventando ideias cá muito minhas, ideias novas

b) « R.J. - És muito desavergonhado
R.I. - E tu muito antiquado


c)« R.J. - Vou então expor em que consistia a pedagogia antiga, naqueles tempos em que eu florescia pugnando pela justiça, quando a moderação era de norma. Para já não era habitual ouvir-se um fedelho murmurar sequer uma palavra. Além disso, quando se dirigiam para a escola de música, marchavam, nas ruas em boa ordem, cada grupo de seu bairro, sem manto e em formatura, ainda que nevasse como farinha. Aí o professor, obrigando-os a manter as pernas afastadas, fazia-os decorar cantigas, como aquela "Pélade terrível destruidora de cidades" (...) e os moços sustentavam a harmonia tradicional recebida de seus antepassados. E se algum deles se fazia engraçado ou ensaiava uns requebros esquisitos, como hoje em dia está em moda executar à maneira de Frínis essas difíceis modulações, apanhava logo uma valente coça, por atentado às Musas.»
R.I. - Tudo isso não passa de velharias (...)


d) «R.J. - (...) é certo que passarás o tempo nos ginásios, nédio e viçoso, em vez de cirandares pela Praça cacarejando monstruosidades bicudas que nem cardos, como a malta de agora (...)
Raciocínio Injusto - (...) E tu, ó jovem, toma bem sentido nas chatices que o bom comportamento implica, de quantos prazeres da vida irias ficar privado: rapazinhos, mulheres, jogos de amor, petiscadas, pinguinha, gargalhadas... Sim... para que queres tu a vida, se te vês privado desses gozos?»

e) Por fim, o raciocínio Justo é derrotado com uma argumentação que é, simultaneamente, um atestado da decadência resultante das "novas pedagogias" e do inerente abandono das velhas tradições. Um termo repete-se: euri-proctos. Ora, euri (largo, amplo) + proctos (ânus) significa qualquer coisa como (à letra: ânus largo) paneleiro (picolho ou rabeta) dos nossos dias, isto é, homossexual no sentido predominantemente passivo da tara. O termo é usado pelo Raciocínio Justo, defensor da pedagogia tradicional, como cúmulo do depreciativo e pelo seu opositor, paladino da pedagogia moderna, como zénite da virtude. O que trata de demonstrar pragmaticamente e escorado nos índices de triunfo social da classe:
«R.I. -E que tem que seja rabeta? Que mal lhe virá daí?
R.J. - Diz antes: que mal ainda maior que este lhe poderia vir daí?
(...)
R.I. - Ora então diz-me cá uma coisa: aonde é que vão buscar os advogados do Ministério Público?
R.J. - Aos rabetas.
R.I. - Certo. E os tragediógrafos, aonde vão buscá-los?
R.J. - Aos rabetas.
R.I. - Dizes bem. E os oradores, vão buscá-los aonde?
R.J. - Aos rabetas.
R.I. - Portanto, reconheces que não tens razão, não é? E já agora, entre os espectadores quais constituem a maioria? Olha bem.
R.J. - Estou a olhar.
R.I. - E que vês tu?
R.J. - Que... Ena pai!... são de longe mais numerosos os rabetas. Por exemplo, este aqui, que eu conheço, e aquele além, e esse aí de grande trunfa...»

Aristófanes quase nos dispensa de mais palavras. Encetemos, todavia, um balanço final.
Que significa, neste momento inaugural, "moderno"? - Sofista, nem mais. A "nova pedagogia" é a pedagogia dos sofistas. E tanto assim é que o "moderno" e a "modernização" nunca mais perderão esse cunho original de "sofistica(do)" e "sofistica(ção)". O moderno, o novo é e será sempre, desde então, mais sofisticado que o antigo. Por outro lado, este litígio entre o antigo e o novo, entre o tradicional e o moderno, entre o legado e a invenção, de que a sofística constitui, repito, o protótipo, reflecte a luta ancestral - que não mais deixará de assombrar a civilização europeia - entre o sagrado e o privado, entre o arquetípico e o egótico. Na disputa pelo espaço social e mental da polis, ou dito em termos hodiernos, do "espaço público".
Quanto a Sócrates, uma última nota: se é certo que, segundo Platão, não seria exactamente um sofista, também não é menos certo -e agora fazendo fé na "Apologia" - que opunha um "deus/daimon pessoal" aos deuses da cidade e dos seus antepassados. Um protestante avant la lettre?...

2 comentários:

zazie disse...

Excelente, Dragão!

(a tua tradução está deliciosa)

Anónimo disse...

Eu já tinha a dito a Pedro Arroja que, muito antes de Hume e Descartes, foi Sócrates o pai do ateísmo moderno.