quinta-feira, agosto 09, 2007

O Não-Deus - I. A Parafísica

O vulgo, que é cada vez mais crivado de pseudo-informação e está cada vez mais ruidoso e estúpido, convenceu-se de que a Metafísica é uma sucata mental completamente inútil que, mais coisa menos coisa, consiste em discutir o sexo dos anjos, nas suas diversas ordens e classes: querubins, tronos e serafins.
Todavia, quando um ateu - melhor ainda, um ateísta moderníssimo - proclama que Deus não existe nem faz cá falta nenhuma -haja dinheiro e tecnologia, que o resto vem por arrasto -, está a responder a uma das perguntas basilares da Metafísica -que, recordo, são quatro: 1. O que é o Homem? 2. Donde vimos? 3. Para onde vamos? 4. Deus existe? Exactamente, e por incrível que pareça, está a responder - pela negativa, mas a responder. Por conseguinte, e apesar da sua jura de amor eterno e exclusivo a uma mera e redentora Físico-química, está a patinhar na Metafísica. E o caso é tanto mais grave e patético quanto se serve de tudo para erguer e esgrimir contra Deus, para firmar a não-existência Deste. Quer dizer, a sua metafísica resume-se, não a quatro, mas a uma única pergunta: a quarta - Deus existe? - Não; que disparate anacrónico e aberrante: Deus não existe!, proclamam a todas as horas.
Tentem inquirir-lhes pelo Homem, pela proveniência ou pela finalidade do mundo. Nada disso lhes interesssa ou minimamente os intriga ou afecta. O importante, o essencial é que Deus não exista. Crucial é que Ele não estorve. Acreditam pois, e piamente, na "Não-existência de Deus". E acreditam à maneira das crianças apavoradas com qualquer papão ou monstro emboscado nas trevas que atravessam a noite a repetir a si próprias: "os monstros não existem! O papão não existe!..." Eles, porém, não só atravessam as noites como passam os dias. E não apenas o repetem mentalmente a si próprios, ou martelam obsessivamente a quem quer que encontrem, como o escrevem por toda a parte. Aposto que até nas toalhas e guardanapos dos restaurantes, concluído o repasto, lá deixam garatujado: "Deus não existe!" Já não falando nas paredes dos sanitários ou nos blogues que criam para o efeito, passe a redundância. É uma espécie de religião automática, este ateísmo monocórdico.
No entanto, a bem da verdade, convém precisar que a metafísica ateísta -chamemos-lhe parafísica - não é apenas uma mutilação e uma miniaturização utilitária da metafísica ocidental. De facto, mais do que reduzi-la a uma única pergunta, eles convertem-na numa única resposta. Se ao longo de milénios se pesquisaram e entreteceram "provas da existência de Deus" era porque, por um lado, existia a pergunta e, por outro, existindo essa pergunta, existia a dúvida própria do mortal. Ora, nos antípodas disso, a afirmação da não-existência de Deus destes religiosos modernos é peremptória, definitiva, axiomática. Não responde nem duvida em tempo ou modo algum: decreta. Sendo automática, é igualmente uma Fé de burocratas, aliás, mais que Fé: uma fézada. Nitidamente, constata-se que ambiciona o império absoluto duma qualquer Repartição Geral das Crenças donde, após publicação em Diário da República, se obrigará, com força policial, à ilegalização de Deus e, no mínimo, ao internamento compulsivo para desintoxicação dos infractores. Quando, há dias atrás, o Governo Chinês proibiu o Buda de reencarnar, surpreendemos em pleno acto uma eclosão exuberante dessa mesma mentalidade peregrina - epifania mirabolante, essa, que deve ter enchido de volúpia onírica e projecções equiláteras os ateístas cá da paróquia. "O chamado Buda existente reencarnado é ilegal e inválido sem a aprovação governamental", decreta o Partido Comunista Chinês. Isto não é apenas hilariante: é sinistro. E não é apenas património folclórico dum país despótico ou duma cultura longínqua: entre nós porfia-se e avança-se, a passos visíveis, para uma uniformização forçada e burocrática de idêntico jaez tecnoeficiente; uma universão em que os cidadãos são degradados a meros porta-modas -sendo estas, todas elas (económicas, políticas, científicas, jurídicas e morais), obrigatoriamente compactadas numa única religião laica, monototemística, rigorosa e exclusivista. Creem, os seus apóstolos frenéticos, que através duma hábil manipulação - onde a alquimia do voto enxertada na cabalística mercantileira operará milagres -, a Opinião Pública poderá ser contrafeita em Religião Pública. Já que Deus não morre, ilegalize-se. Já que teima em persistir, proiba-se. A limite, encarcere-se. Por conspiração e contumácia.
Ninguém se surpreenda se um dia destes a parafísica for objecto de referendo.
Há toda uma nova religião de ímpetos proselitistas e globais em marcha. Só se pode espantar com o carácter cada vez mais opressivo de nova-catequese que infecta os sistemas educativos ocidentais quem ainda não percebeu isso. Estes ateístas são apenas uma das suas tropas de choque - uma espécie de novos dominicanos espontâneos. Deus criou o mundo, mas é a eles que compete corrigi-lo.
E preparemo-nos: Moral e Religião devirá, a breve trecho, disciplina nuclear nos diversos ciclos do Ensino. A única, aliás.

21 comentários:

Anónimo disse...

Caro Dragão,
Tentar decretar a "morte" ou ilegalização do que não existe, parece ser uma rematada loucura, por contraditória nos seus termos.
Mais interessante do que a inutilidade de discorrer sobre a existência ou não de Deus, seria tentar perceber como se estendeu a toda(?) uma sociedade esse conceito.
Pelo que tenho pesquisado, a ideia de Deus sempre esteve ligada a PODER ABSOLUTO.
Passo explicar:
O terror do homem primitivo perante o que não podia controlar ou não entendia, levou-o a acreditar que podia influenciar quem detinha esse poder, fosse lá quem fosse, da mesma forma que o fazia com o seu chefe tribal: rogando, implorando, servindo.
Quando conseguimos explicação para muitas das coisas que antes atribuíamos a Deus, sobram sempre muitas que ainda não entendemos e servem de justificação para continuar a transferir a ignorância para aquele de quem exigimos todas as respostas.
Parece-me que a maior dificuldade em chegar a conceitos seguros provem do facto de nos ter sido incutida, desde a infância, a "verdade" indiscutível da existência de Deus. Essa formatação "ab initio" condicionará sempre a nossa imparcialidade de raciocínio.
Finalmente, não existindo nenhuma prova física, da existência de Deus, para que mais servirá ele do que para preencher a nossa ignorância e compensar a nossa insignificância que, uma e outra, nos recusamos a aceitar.
Um pouco de humilde aceitação do que somos e valemos, dispensava bem a criação de mitos como o de DEUS.

dragão disse...

Caro José Dias,

repare que se a quarta questão da Metafísca gera todos estes sarilhos, a primeira questão, então, gera outros tantos, senão mais ainda: O que é o Homem? Terrível pergunta.
Vosselência recomenda "um pouco de humilde aceitação do que somos e valemos". Pois; o problema é que também não sabemos isso.
O mais que alcançamos foi o que nos disse um monstro, mítico também ele, há muitos séculos atrás: é que caminhamos em quatro patas de manhã, em duas ao meio-dia e em três ao anoitecer.
E se reparar bem é verdade: a humanidade, hoje em dia, já não consegue andar sem bengalas. Agora chamam-lhe próteses.
Nem andar nem pensar.

Anónimo disse...

"4. Deus existe? Exactamente, e por incrível que pareça, está a responder - pela negativa, mas a responder."

Tens toda a razao, o' Dragao. Por esse motivo (e mais uns outros avulso), considero que a quarta questao esta' mal colocada. Dai' nao ser ppossivel responder-lhe, nem vejo que exista grande interesse nisso. As outras tres perguntas, pelo contrario, sao boas perguntas, embora tambem necessitem de maior desenvolvimento e especificacao concreta para gerarem "respostas" interessantes.

Agora, numa linha diferente: Deus e, na verdade, muitos Deuses "existem" nas realizacoes mais nobres da Humanidade - arquitectonicas, musicais, literarias,... (ainda no fim de semana, vi um vitral pintado pelo Braque numa pequena igrejinha e aposto que ele nao era religioso...

Anónimo disse...

"existem" nas realizacoes mais nobres da Humanidade - arquitectonicas, musicais, literarias,...

e ate' cientificas... se se interpretar a existencia de "Deus(es)" como equivalente 'a inteligibilidade do Mundo (consequentemente de nos proprios). No fundo, nesse sentido, o trabalho intelectual de compreender e interpretar o mundo (seja sob uma perspectiva cientifica, filosofica ou artistica) assume, de modo implicito, a sua existencia. A relacao disto com religiao organizada e', na melhor das hipoteses, muitissimo tenue; geralmente, sao completamente antagonicas. Deus(es) sao entidades altamente abstractas.

zazie disse...

Excelente Dragão. Ando eu de catana a desbastar a selva e tu, aqui, a escreveres coisas destas.

Vou já "lincar"

"Aposto que até nas toalhas e guardanapos dos restaurantes, concluído o repasto, lá deixam garatujado: "Deus não existe"

eheheh

zazie disse...

A religião organizada é lixada. Já as ideologias que se organizem à vontade que, na pior das hipóteses, vão-se trocando por outras mais em conta

":O.

zazie disse...

Tudo se pode organizar, a começar pela estupidez. Mas se toca às religiões, aqui del'Rei- perigo! heresia, organizações só laicas e bem legisladas pelo poder político

":OP

dragão disse...

Ó MP-S, isto vai ter continuação, pelo que algumas dessas tuas afirmações -especialmente a de que "a quarta questão está mal posta" - poderão confrontar-se com outros cenários.
Mas, assim de repente, poderíamos lembrar aquele ditado popular: "quando um gajo não sabe, f... até os tomates estorvam". Basta substituir o "f..." por responder.

:O)

Anónimo disse...

O' Dragao, se conseguires desenvolver a quarta questao de forma consistente...

agora, ve la' se nao te enrolas nos tomates... :O)

(e' pa', eu aprendi a remar em Lisboa com um senhor que adorava esse ditado.... e outros tambem)

dragão disse...

Olha pá, aprendi com um grego há mais de 2400 anos:
«Sábio não é aquele que conhece as respostas a todas as perguntas; sábio é aquele que conhece as perguntas que não têm resposta."

Ora, uma, pelo menos, eu conheço. Adivinha qual?

:O)

A filosofia é errar num labirinto... Às voltas com as quatro perguntas.

dragão disse...

Ò Zzzie, se precisares duma moto-serra, dispõe!...

:O)

zazie disse...

Tu não me digas nada... estou em estado catatónico e ainda falta mais de metade

":O.

(P.S. sabes uma coisa muito gira? uns melros fizeram ninho dentro do meu jasmim. Tal é o exagero em que aquele jasmim se transformou. Acho que já vai jasmim no quarto prédio do quarteirão.
Mas os melros estão fixes. Ficaram lá dentro)

ehehe

zazie disse...

Na verdade, é mais uma mistura enrolada de wisteria lilás com buganvílea branca e jasmim...

Anónimo disse...

A ferocidade das buganvileas é lendária. Em menos de nada, devora uma casa, telhado e tudo.

:O)

Dragão

Anónimo disse...

Se Deus existe não sei. Nem sei mesmo se eu existo. Mas sei que o Dragão existe e ainda bem!...

Anónimo disse...

Caro Dragão,
Argumentar perguntando "o que é o homem?", parece-me "fuga para a frente".
É que a questão que eu pretendi abordar era apenas a existência de Deus como entidade real (física ou outra) e não o(s) conceito(s) criado(s) pelo homem. Esse, julgo eu, ninguém negará.
O que seria esse Deus, aceitando a possibilidade da sua existência, levaria a argumentações ainda mais complexas, tentando fugir às contradições que me parecem evidentes.
Claro que estamos longe de SABER o que é o homem; mas se não aceitarmos a sua existência como verdade (eu sei que alguns filósofos a puseram em dúvida), julgo que nada mais haverá a discutir.

lusgon disse...

Eu sei que Deus "É" e acredito que eu "Estou". Quanto ao que os outros pensam devo admitir que não me interessa por aí além.
Pessoalmente acho que cada um de nós está muito mais próximo de Deus que uns dos outros e é também por isso que não O conseguimos distinguir. Falar da luz só faz sentido face à escuridão, o Inferno é negação do serviço de manutenção.
Para conhecer Deus apenas tenho de me conhecer a mim próprio, para conhecer o meu semelhante tenho de conhecer a parte de Deus que não existe em mim...Como é mesmo que me chamou da outra vez?...

Anónimo disse...

À uns tempos mostraram na tv umas experiências em que puseram nas cabeças de umas pessoas uns eléctrodos pelos quais fizeram passar correntes eléctricas, que por sua vez geraram reacções químicas. Segundo os cientistas a maioria dessas pessoas afirmaram ter tido experiências transcendentais.
Disseram os cientistas que ficou provado que, são as reacções químicas que geram os pensamentos.
Para além de várias outras questões que me suscitaram dúvidas, a mais obvia pareceu-me a impossibilidade, pelo menos actual, de orientar-mos o percurso da corrente eléctrica através da pele, dos ossos cranianos, córtex, etc, para atingir certas zonas específicas do cérebro.
Neste caso ao induzir a corrente eléctrica, um factor externo, criou condições para as experiência transcendentais. Parece-me que quase provaram, o contrário daquilo a que se propuseram. A ciência “tel-a-vision” tem destas coisas.
Uma coisa é certa, o cúmulo da vadiagem é, a morte bater à porta, e o individuo não estar em casa.
Carlos.

Unknown disse...

" Filosofia é a arte com a qual e sem a qual, se fica tal e qual..."

Esta definição popular, tem algum fundamento, mas também é bem verdade que, se não estamos ainda mais "cristalizados", devemos isso ao fantástico mundo da filosofia.
As discussões metafisicas, não levarão a lado nenhum, mas obrigam-nos a pensar, o que, e principalmente nos tempos que correm, já não é nada mau...

Anónimo disse...

olha que crl mais um a querer discutir a existencia de deus , porra ao fim de 5.000 de filosofia e ainda ninguem tem a resposta certa , nim

Marco Oliveira disse...

Anónimo das 11:42 PM,
E haveremos de discutir sempre essa existência. É uma inquietação que faz parte da condição humana.
Coitado de quem quiser dar (e impor!) uma resposta definitiva sobre esse assunto.