A dona Genoveva levantou-se hoje de manhã e foi às compras. É uma coisa que a dona Genoveva, uma velhota simpática, faz todos os dias. Uma coisa banal. Não constitui aquilo a que se chama "notícia". Os telejornais não dão importância à dona Genoveva e à sua odisseia diária de esbanjamento duma reforma milionária de 200 euros. Era preciso que a dona Genoveva protagonizasse ou experimentasse algo de extraordinário, de inaudito, de maravilhoso para que as televisões e os jornais corressem a decorar com ela as suas parangonas. É sabido: para que a Genoveva se tornasse interessante aos olhos dos espectadores das televisões, ou aos leitores dos jornais, e caso não ganhasse o Euromilhões ou fosse tia da Cinha Jardim, no mínimo, teria que massacrar os vizinhos, assaltar dois ou três bancos, deitar fogo ao supermercado ou, melhor ainda, descolar em voo perfeito da varanda, montada na vassoura, e perfazer várias piruetas e loopings, enquanto sobrevoava a cidade e as praias da Caparica à velocidade dum pombo. Assim, alquebrada, simpática, patusca, mas sem superpoderes-ou-parentescos nem espectaculares psicopatias, a dona Genoveva não é notícia. Ou seja, é como se nem sequer existisse. Mesmo que escrevesse romances ou poemas imortais, só postumamente teria algum interesse para o público e respectivos tratadores, os críticos e os magnatas da edição.
Tudo isto para exemplificar esse fenómeno óbvio e por todos nós reconhecido: o banal não constitui combustível da informação. É uma regra superlativa. Que, pelos vistos, também terá as suas excepções. Basta atentarmos em notícias como esta:
«Mais de 200 mortos em atentados suicidas».Ora, isto, o massacre actual de pessoas no Iraque, das mais variadas formas e feitios, é ainda mais banal do que a dona Genoveva ir às compras ou receber 200 euros de reforma. Já ninguém, leitor ou espectador que seja, quer saber disso para nada. Todos, sem excepção, bocejam e suspiram de tédio. É uma daquelas banalidades que, de tão frequente e repetitiva, até já maça. Irrita. A carnificina, quando ininterrupta, rotineira, monocórdica, também enjoa. Sim, até a carnificina. Imaginemos que todos os dias os comboios descarrilavam calamitosamente: a malta enfadava-se; os basbaques desertavam. É como aquilo no Iraque. Já não tem nada de extraordinário. Extraordinário, espantoso, surpreendente e, portanto, merecedor, aí sim, de destaque informativo, seria o dia em que ninguém tivesse sido selvaticamente massacrado. Uma abertura do género: "Sensacional! nenhuma bomba explodiu nas últimas 24 horas, ninguém foi raptado e não se encontrou nenhuma vala comum apinhada de indivíduos sadicamente mutilados e assassinados!...", é que congregaria, estou em crer, a estupefacção geral. Aí sim, teríamos uma novidade a todos os títulos embasbacante e era uma corrida desinsofrida de mirones aos televisores. Mas assim... Sabe a ranço. Qual é a novidade? Ao fim de seis anos, dois mil e tal dias ininterruptos de repetição monótona, um fenómeno, mais que caquético, está caduco. Extinto. Morreu. Já são ossadas, poeira esquelética. Ora, além do aberrante, não é da novidade que vive a notícia? Mas quando o aberrante se banaliza, deixa de ser aberrante e passa a ser normal.
Então porque insistem? Porque continuam a estender tão desinteressante porcaria à janela? Porquê este tratamento excepcional do banal como se fosse extraordinário?
Acho que se chama saturação. Estão a saturar-nos. Não basta que o aberrante se torne normal: é imprescindível que o normal devenha necessário, essencial. Assim como o sol a nascer todos os dias. Não chega que nos habituemos à carnificina: é fundamental que já não consigamos viver sem ela. Que um mundo onde ela não aconteça a todas as horas, metódica e quase burocraticamente, se nos afigure em caos absurdo, tenebroso e ameaçador.
É como uma música de fundo. Um gás hipnótico, cristalizador e tranquilizante... para a ratazana que há em nós.
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