O caso resume-se em duas palavras: a sopeira do Dino tomou o freio nos dentes. O Dragão, que é um cínico, comentou: "Bem, antes o freio que o prepúcio; se fosse o prepúcio é que era uma chatice". Não sei quem é o tal "Prepúço", mas não achei piada à falta de solidariedade do Cospe-lume, pelo que estrilhei: " Dasse ó Dragão, se fosse a tua sopeira que desatasse numa sorna daquelas, agarrada às telenovelas, às "Marias" e às "caras" que só visto e a não querer fazer nenhum, aposto que não te punhas com essas altamijices! Em vez de te preocupares com o Dino, que além de meu secretário-técnico é teu amigo, interessas-te é pelo tal papuço, ou acúrcio, ou lá como se intima o fulano!..."
Aqui o gajo ainda me rosnou que o dito Púcio andava envolvido com uma tal Glande, mas eu já não lhe liguei nenhuma (tristeza do camandro, agora a cuscar a vida dos outros) e fui, mais o Dino, à procura do Padre Inocêncio para ver se vinha dar um jeito na possessa. Ao princípio, foi um bocado difícil convencê-lo da urgência da coisa. Cercado por um bando de beatas vestidas de corvos agoirentos, desplanteava-se a torto e a direito: que varrer telenovelas não era grave, mais grave e digno de exorcismo eram certas pessoas que passavam a vida a varrer galdérias e mulheres do alheio; que vampirizar revistas da tanga também não era alarmante, mais digno de emergência médica eram certos gabirus que até vampirizavam ácido das baterias à falta de aguardente ou trotil amedronhado; e outros remoques que tais visivelmente endereçados aqui ao Engenheiro. Eu até estava quase a dizer ao Dino: "Anda-te embora, ó Dino, que o prior só descumbersa!" Mas aí o Dino teve a feliz lembrança de murmurar que a desvairada agora até gastava as tardes metida em comícios da IURD e os sábados a escutar pastores evangélios em Campolide, pelo que o das hóstias lá se tocou, despachou as beatas, pegou na bíblia, numa série de cachecóis do clube dele e veio ver o que se podia fazer pela rês em perigo. "Má rês, avisei-o eu. Olhe que aquilo, da maneira que está, só lá vai com uma boas bordoadas". Donde recomendei que, na qualidade de pastor justiceiro, não esquecesse o cajado. Mas o gajo olhou-me de través e nem me respondeu. Nitidamente, não vai à bola comigo. Nem nitidamente nem aos domingos.
Chegados a casa do Dino, lá deparámos com a mal-parida, a ouvir o canal da IURD no rádio, de "maria" nas unhas e escarrapachada nos seguintes propósitos (até tirámos a fotografia que se segue para prova futura):
Chegados a casa do Dino, lá deparámos com a mal-parida, a ouvir o canal da IURD no rádio, de "maria" nas unhas e escarrapachada nos seguintes propósitos (até tirámos a fotografia que se segue para prova futura):
Estremecemos todos de horror. O prior benzeu-se. Pela casa toda, o pó e a sujidade amontoavam-se (amontoavam-se é pouco, que aquilo já formava cordilheiras); a desarrumação era geral; na cozinha, um monte de loiça suja levedava monstros e já invadia a sala; da casa de banho tresandavam cheiros que nos davam saudades duma boa sargeta de beco ; um monte de roupa por passar apinhava-se a um canto; cascas de amendoins e tremoços, caixas vazias de bombons e rebuçados cobriam a carpete e as alcatifas; uma ratazana pôs-se a milhas, mal nos viu.
Desmoralizado, o Dino choramingava no ombro do religioso, depositando nele as suas últimas esperanças.O Delegado Divino reconheceu finalmente que havia ali obra do Diabo e decidiu meter mãos à obra. Eu bem lhe dizia "Olhe que isto só com as mãos não chega, tem que chegar-lhe também com um belo cacete!", mas o homem de Deus teimava com os seus ritmos tradicionais. Começou por ler-lhe uns versos numa língua estranha - gambosinês ou chatim, se me perguntassem - atirando-lhe ao mesmo tempo uns borrifos de água benta - tudo isto aperaltado nos cachecóis do clube dele (suspeito que é da Sanjoanense). Sussurrei ao Dino: "Está a borrifá-la, queres ver que a vai passar a ferro... Por mim, dava-lhe era c'o ferro na cabeça!...)
A megerona, claro está, borrifou-se para os borrifos. Bocejou que nem um hipopótamo, desligou o rádio e, de controlo remoto à ilharga, ligou a TVI. Melhor fora que tivesse vomitado verduras. Desatou a mamar telenovela à força toda. Ela e nós também, desgraçados e fodidos da vida, que o volume ia alto e já nem a declamação do padre se ouvia. O pastor desesperava e tentava obstar com o cordofone vocal aos transistores endemoinhados do telesgoto. Fraca contrapartida. Já quase a ficar afónico e roucafenho de tanto bravejar, ainda experimentou certas paisagens e perlicoques da Bíblia. O livralhão era grande e pesado. Maciço. Impunha respeito e via-se que fatigava os braços. "Faria melhor se lhe afiambrasse com o calhamaço na cornadura! Um calhamaço só la vai à calhamaçada!...", ainda pensei. E provavelmente estava cheio de razão. Porque daí a nada, o padre ficava mesmo sem pio nem pilhas, com o cordofone todo esbodegado. Vermelho que nem tomate ou quase da cor das camisolas do Glorioso por via do gritanço e da berraria (o que, reparei, destoava do cachecol), agora já só grasnava e grulhava em tom cada vez mais arfangélico. Foi nesse tom barítunante e a suar em bica, que comunicou ao Dino ser o caso mais grave do que ele pensava, pelo que tinha que ir comprar pastilhas prá garganta e falamentar com o bispo a fim de pedir reforços. Meu dito, meu feito: desandou porta fora, rua abaixo, todo derreado dos fagotes e da fézada. E deixou-nos entregues à bichareza - o paquiderme, os ratos, as aranhas, o varejeirame e as baratas. Já não falando no monstro alimalgémio que estava a fermentar, todo pimpão, no monturo rastejante da loiça suja que espreitava da cozinha..
O Dino, coitado e resignado, já se dispunha à retirada estragética, quando me lembrei dumas quantas astúcias e artiminhas. Não é por acaso que me chamam o Einstó da Graça, embora na Moraria me conheçam mais pelo Arquimetes de Alfama."Ouve lá, ó Dino... -disse-lhe eu. - Tens ai um monte de alfarrádios, ainda mais do que o Dragão, porque não experimentas ler-lhe outras partes erudóides? Não foi lá com a Bíblia, pode ser que vá, por exemplo, com aquele gajo muita esquisito, o Manuel do Canto - aquele, ó Dino, o da Crítica da Razão Puta!... Experimenta, meu velho, não perdes nada. Já que 'tamos co'a mão na massa..."
"Olha, boa ideia, Caguinchas, caro Engenheiro. Não foi com religião, a bruxa, pode ser que vá com filosofia!...", animou-se ainda ele.
Um ror de filosofia depois, a gajorra não tinha ido. Nem ido nem vindo, nem coisa nenhuma. Vaca do carulho, continuava no mesmo sítio, a pedir uma grua ou um monta-cargas dos valentes que a removessem dali para o abate. O Dino experimentou ainda o Vitoganso Toino, Camões, o Bocage, alguns manuais de alvenaria, o borda d'Àgua, o Tintin na Patagónia, enfim, livros e mais livros, de todos os talhos, feiçalhos, matérias e patérias, esótécnicos e tudo, mas o estafermo lá continuava todo rainhoso e mastodono.
O Dino lastimava-se e assumia a derrota. "Já experimentei tudo, - carpia - filosofia, poesia, teatro, ciências, astrologia, psicologia, agro-pecuária, ocultismo, e nada. Acho que desisto. Tem as banhas dum hipopótamo e a couraça dum pangolim!..."Um ror de filosofia depois, a gajorra não tinha ido. Nem ido nem vindo, nem coisa nenhuma. Vaca do carulho, continuava no mesmo sítio, a pedir uma grua ou um monta-cargas dos valentes que a removessem dali para o abate. O Dino experimentou ainda o Vitoganso Toino, Camões, o Bocage, alguns manuais de alvenaria, o borda d'Àgua, o Tintin na Patagónia, enfim, livros e mais livros, de todos os talhos, feiçalhos, matérias e patérias, esótécnicos e tudo, mas o estafermo lá continuava todo rainhoso e mastodono.
Reparei então num letrotério que ele tinha em cima da secretária, com uma capa a lembrar crocodilos. "Ainda não experimentaste este, ó Dino!", alertei-o. "É o livro do Dragão", actualizou-me. "Ofereceu-mo no Páscoa e ainda nem o li." E de facto era o que lá dizia na embalagem "À Queima-Roupa", César Augusto Dragão.
"Oh pá, experimenta ler-lhe umas páginas" - sugeri. "Se bem o conheço, o Guarda-princesas, deve ter gatafunhado para aí umas receitas tais, que a gaja mal oiça duas ou três dá-lhe o fogo no rabo em três tempos e desopila em passo de corrida!... O sacana escreve coisas que não só não lembram ao diabo como o põem a fugir a sete pés!...Ao diabo e a qualquer ser vivo... e mesmo as pedras, os grandiosos calhaus, não sei não..."
Numa última tentativa, o Dino lá principiou -isto é, piou que nem um príncipe - na leitura das pilérias e grupos do Labaredas.
Para nosso grande espanto, ao fim de dois ou três capítulos, operara-se uma espantosa e assombrosa transformação. Como naquelas histórias em que o sapo dá lugar ao príncipe, aqui a sopeira elefantosa metamorflausinou-se em algo que, para que não me chamem mentiroso, registei - em flagrante deleito - na fotografia que se segue:
Em menos de nada, com um dinamismo digno duma fada, desatou a deixar a casa num brinco. Até dava gosto vê-la. A passar a ferro, então, era um mimo...
Por fim, lida a obra, a moçoila apetitosa, agora uma profissional de mão-cheia, verdadeira fada do lar, concluíra também as tarefas domésticas. E predispôs-se às espirituais, ou mais bravias, por assim dizer. Realmente, colocada ordem na casa, só faltava colocar ordem nas ideias que descarrilavam desordenadamente em duas cabeças. Ambas minhas, esclareço, a de cima e a de baixo. Já que o Dino, felizmente, fruto da idade, da leitura monocórnica e embalado no suave milagre que lhe salvara o lar, adormecera que nem um santo. Bendita hora!
"Oh pá, experimenta ler-lhe umas páginas" - sugeri. "Se bem o conheço, o Guarda-princesas, deve ter gatafunhado para aí umas receitas tais, que a gaja mal oiça duas ou três dá-lhe o fogo no rabo em três tempos e desopila em passo de corrida!... O sacana escreve coisas que não só não lembram ao diabo como o põem a fugir a sete pés!...Ao diabo e a qualquer ser vivo... e mesmo as pedras, os grandiosos calhaus, não sei não..."
Numa última tentativa, o Dino lá principiou -isto é, piou que nem um príncipe - na leitura das pilérias e grupos do Labaredas.
Para nosso grande espanto, ao fim de dois ou três capítulos, operara-se uma espantosa e assombrosa transformação. Como naquelas histórias em que o sapo dá lugar ao príncipe, aqui a sopeira elefantosa metamorflausinou-se em algo que, para que não me chamem mentiroso, registei - em flagrante deleito - na fotografia que se segue:
Em menos de nada, com um dinamismo digno duma fada, desatou a deixar a casa num brinco. Até dava gosto vê-la. A passar a ferro, então, era um mimo...
Por fim, lida a obra, a moçoila apetitosa, agora uma profissional de mão-cheia, verdadeira fada do lar, concluíra também as tarefas domésticas. E predispôs-se às espirituais, ou mais bravias, por assim dizer. Realmente, colocada ordem na casa, só faltava colocar ordem nas ideias que descarrilavam desordenadamente em duas cabeças. Ambas minhas, esclareço, a de cima e a de baixo. Já que o Dino, felizmente, fruto da idade, da leitura monocórnica e embalado no suave milagre que lhe salvara o lar, adormecera que nem um santo. Bendita hora!
Porque, graças a Deus, eu de santo não tenho nada. E ela de postiço também não tinha.
Emgenheiro Ildefonso Caguinchas
PS: Além disto, acho que o livro também é bom para desentupir canos. Lêem-se-lhes duas páginas e é vê-los correr em beleza.
2 comentários:
Grande Engenheiro, que sorte a Sua!
Tudo em Seu, dela, sítio...
Abraço.
Marabilhuoso, marabilhuoso...
S'isto continua àssim este ingenhêiro 'inda desbanca ó Dragon, carago!
Mas já'gora sempre lhe digo, penedo, que a aluson à ratazana a fugire num é buoa literatura; sei lá, parece qu'insinua qu'a bichinha 'inda tinha bergonha, ó o carago - ficaba muinto milhor s'a bicha nem ligasse puto à chegada do gajo e do padre, qu'era sinal qu'aquilo tava mesmo um chiqueiro pegado; 'tá a ber, tipo a ratona do carago já se daba como in casa, qu'era da supeira num fazere nenhum... Isso é qu'era um'image literária cunbincente, assim a dare pró hiperbuólica.
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