«Viviam certas rãs num charco imundo
Em república plena. Era um pagode!
Tal qual uns democratas que há no mundo
Julgando que a república, no fundo,
Outra coisa não é senão a gente
Fazer o que bem quer e quanto pode,
A rã tripudiava impunemente
Todos os dias era certo o choque
Entre o batráquio forte, intransigente,
E a parte da nação já descontente
Que a Júpiter pedia ou rei ou roque.
O deus fez-lhe a vontade.
Largou-lhe lá do céu um rei pacato,
De suma gravidade.
Das alturas tombando, o rei na queda
Fez tal espalhafato,
Que as fêmeas em pavor, os machos fulos,
Aquelas saltitando, estes aos pulos,
Como é uso das rãs nas grandes crises,
Cada qual a gritar: arreda! arreda!
Entre os juncais, no lodo, nas raízes
Dos salgueirais se enreda.
Por longo tempo em seus esconderijos
Das rãs esteve homiziado o povo.
Transformaram-se em medo os regozijos
Da antiga bacanal. Gigante novo
Cuidavam ser o rei que o céu lhes dera.
Não ousavam sequer sair da toca;
Pois, não raro, os instintos maus da fera
Por imprudente a presa é que os provoca.
Já nessas eras muito a pêlo vinha
Dizer: Cautela e caldos de galinha...
O rei era um pedaço de madeira.
Nem mais, nem menos. Numa bela tarde
Uma das rãs, por ser menos covarde
Ou mais bisbilhoteira,
Tirou-se dos cuidados, manso e manso,
Na flor das águas surge, e às guinadinhas
Com muito tento e jeito,
Do cepo se aproxima.
Após ela vem outra...e outra... aos centos!
Vendo que o rei não sai do seu ripanço,
Rodeiam-no; coaxam: salta acima!
E coaxado e feito!...
O rei, temido outrora, às picuinhas
Dessa chusma vilã se vê sujeito.
Em rápido momento
Sobre ele a malta audaz se encarrapita,
E faz do bom monarca um bom assento.
Nem chus nem bus! Calado que nem porta,
Qual fora noutros tempos!...
Isto irrita.
Rompem as rãs então numa algazarra
Qu o pântano atordoa,
Os fios de alma a quem as houve corta:
«Leva daqui, ó Jove, esta almanjarra
«Leva daqui, ó Jove, esta almanjarra
Que nem mexe, nem pune, nem perdoa,
E mais parece uma alimária morta.
Cabide duma croa,
Em vez de nosso rei - nossa vergonha!»
Vai Júpiter que faz? Uma cegonha,
Das muitas que possui, logo destaca,
E manda que das rãs ponha e disponha,
Numa das mãos o queijo e noutra a faca.
Ora a cegonha, apenas em seu trono
Dona das rãs se vê e sem ter dono,
Diz consigo:
«Nasci dentro dum fole!
Quem tira agora o papo da miséria
Sempre sou eu!...»
Passeia toda séria,
Perna aqui... perna além, num andar mole,
E quanta rã apanha quanta engole.
Geral consternação o charco enluta,
Renovam-se as lamúrias:
Que o rei é doido e tem às vezes fúrias:
Que, doido ou não, o povo trata à bruta:
Por fim, que faça o deus formal promessa
Que o rei é doido e tem às vezes fúrias:
Que, doido ou não, o povo trata à bruta:
Por fim, que faça o deus formal promessa
Doutro rei que as não coma tão depressa!
O Júpiter tonante
Destarte lhes responde:
"Inútil prece!
"Inútil prece!
Dei-vos um rei tranquilo, inofensivo,
Que nem sempre se tem nem se merece:
Um rei que era um regalo!
Um rei que era um regalo!
Foi vê-lo e pô-lo pela barra fora!
Dei-vos um segundo: um génio um pouco vivo.
Meninas, aguentá-lo!
Era bom o primeiro e foi-se embora.
É mau este de agora.
Contentai-vos com ele, ó meus endezes,
Que venha quem vier... pior mil vezes!"»
- Francisco Palha, "As rãs pedindo rei"
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