«"Jesus, lembra-te de mim, quando estiveres no teu Reino". Ele respondeu-lhe:" Em verdade te digo, hoje estarás comigo no Paraíso."»
- Lucas, 23, 42-43
«Por fim, ainda mais frequentemente, quase pode dizer-se ininterruptamente, havia as execuções. A cruel excitação e a rude compaixão suscitadas por uma execução constituíam uma importante base do alimento espiritual do povo. Eram espectáculos nos quais se continha uma moral. Para os crimes horríveis a lei inventava punições atrozes. Em Bruxelas, um jovem incendiário e assassino foi colocado dentro de um círculo de feixes de lenha a arder e atado a uma corrente que girava em torno dum eixo. Ele dirigia aos espectadores apelos comoventes "e de tal modo enterneceu os corações que todos desataram a chorar e a sua morte foi considerada como a mais bela que jamais se viu". Durante o terror borgonhês em Paris, em 1411, uma das vítimas, o senhor Mansart du Bois, tendo-lhe o carrasco pedido perdão, segundo o costume, não só lho concede de todo o coração, mas ainda lhe diz que o abrace. "Havia sempre grande multidão de povo e quase todos derramavam comovidas lágrimas".
Quando os criminosos eram grandes senhores os homens do povo tinham a satisfação de ver aplicado o rigor da justiça e ao mesmo tempo verificar a inconstância da fortuna exemplificada por forma mais impressionante do que num sermão ou numa pintura. O magistrado punha todo o cuidado em que nada faltasse para "efeito do espectáculo": o condenado era conduzido ao cadafalso vestido com o garbo devido à sua elevada condição. Jean de Montaigu, grão-mestre do palácio do rei, vítima de João Sem Medo, é colocado numa carreta precedida por dois trompeteiros. Leva as suas vestes de gala, gorro, capa, as meias metade vermelhas metade brancas e as esporas de ouro. Estas são deixadas nos pés do corpo degolado, suspenso da trave. Por ordem especial de Luís XI a cabeça de Mestre Ouidart de Bussy, que recusara um lugar no Parlamento, foi desenterrada e exposta na praça de Heslin, coberta com um gorro escarlate forrado de peles "selon da mode des conseillers du Parlament" e com versos explicativos.»
- Johan Huizinga, "O Declínio da Idade Média"
O grande "espectáculo" medieval -a execução pública - está mais próximo da tragédia grega que do circo romano. Desperta sentimentos mais nas imediações do terror e da piedade que do gáudio violento e animalesco. É mais catarse que entretenimento. Os espectadores educam-se, aprendem uma profunda lição. Suspeitam que ao lado de cada condenado, no patíbulo derradeiro, na agonia final, vela ainda Cristo pregado à sua cruz, entre criminosos.
Chamamos à Idade Média a Idade das Trevas. Foi preciso esperar pelo Iluminismo da guilhotina, pelas harpias tricotadeiras da praça da Revolução, para que a execução fosse entregue a uma máquina e a morte ganhasse contornos de indústria e dignidades de burocracia. A chacina toma carácter de empreitada. O povo não aprende: vinga-se. Refastela-se nos seus mais baixos e primitivos instintos. A morte, enfim, banaliza-se. Já nada de trágico, ético ou profundo encerra. Mata-se um homem como se mata uma galinha. Pois a principal diferença entre ambos, a bem da Razão e da Liberdade, foi abolida.
Se chamamos Idade das Trevas à Idade Média e Idade das Luzes à Idade Moderna, então forçosamente, temos que chamar à nossa a Idade da Cegueira. Tanta luz cegou-nos. Tanta liberdade escraviza-nos.
3 comentários:
Muito bem visto e bem escolhido ó "cavalheiro das trevas"
":O)))
Sabe tão bem pegar no Huizinga de vez em quando
Seria imperdoável não ter lido a reflexão nem ter dado sinal disso.
Concordãncia absoluta e síntese para ser divulgada.
um abraço.
O Ab leia com atenção. Fui específico nos parentescos.
As execuções pré-modernas são duma atrocidade formal indubitável. Mas não é isso que está em causa. O que está em causa é o "em nome" do que se mata e o significado dessa morte.
Dou-lhe só uma pista breve: o carrasco pré-moderno é um instrumento de Deus.
Em próximos postais aprofundarei isto.
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