sábado, junho 04, 2005
Senhoras e senhores: A Poesia. Como eu a entendo...
A poesia, no meu entender (bem como a genuína literatura em geral, estava capaz de asseverar), se mais utilidade não tem, pelo menos uma especifidade possui em que é, em que deve ser, inexcedível: escandalizar a cabeleireira e o burguês, passe o pleonasmo. Essa é, de resto, sobretodas, a sua "marca d'água".
Para tira-teimas do que acabo de afirmar, basta ler o que passo a declamar-vos:
Maelstrom
A memória range-me num encravar de mecanismo
a minha cabeça rodopia no maelström...
As ideias embrulham-se nas ondas e eu cismo
que todo o meu mundo se despenha no abismo
e a bordo da minha vida, atordoado, oiço o som.
Ainda um dia iço o estandarte pirata
no alto da gávea, no mastro grande!
Vou doido p'los mares armar zaragata
pilhando por gozo jóias, ouro e prata
cevando-me em crueldade e sangue!
Devasto tudo, a torto e a direito:
Yates, paquetes, chatas e cargueiros.
Aos passageiros estripo-os a preceito
enforco nas vergas choros a eito
que eu cá sou ímpio, não faço prisioneiros!
Transfiguro-me em caretas ávidas
a tudo ansiando presidir.
Desde jacarés tragando bruxas grávidas
defronte dos maridos, de almas pávidas,
que faço despenhar logo a seguir.
Ah, só de imaginar as cabeças degoladas
que minha espada fez rolar p'lo convés...
caramba, apetece-me desatar às gargalhadas
como se depois de violentadas
as grã-finas ainda fossem calcadas a pés!
Irra, uivo babando-me ante a carnagem!
Banho-me deleitado no sangue do morticínio.
E, em renovados gritos de abordagem,
rejuvenesço na eterna pilhagem
e em holocaustos de selvático extermínio!
E não há nada que arrefeça ou aplaque
a minha bárbara fúria homicida!
exulto de pôr todos a saque;
mas o que me agrada mais (e à minha claque!)
é de roubar-lhes a própria vida!
Por fim, escreverei odes a cantar tais feitos
que tanto me enalteciam e sublimavam.
As velhas que catapultei dos parapeitos
directas às fauces de esqualos satisfeitos
que, com goela cruel, risonha, as tragavam!
Ah, ponho a pontapés fora de mim
todo este remorso que me sufoca!
Sublevo-me comigo num motim
não dou p'la minh'alma meio xelim
-faço-me refém duma qualquer troca!
Lincham-me o coração, os amotinados,
esquartejam a razão e vendem-na a peso
p'ra talhos, restaurantes e mercados;
até que, por fim, chegam os soldados,
abafam a revolta e levam-me preso.
Algemado e sob escolta, sigo p'lo cais a marchar.
Altivo de soberba, lanço olhares de desprezo
à populaça avulsa, de roda, a ladrar,
sôfrega de me ver pendurado, a estrebuchar,
não acontecesse que, perante meu olhar surpreso,
os soldados que me escoltavam,
abrindo caminho co'as baionetas,
aqui e ali anavalhavam
cretinos que logo se afastavam
ganindo uns, outros manetas!
Ah, estou entre os da minha laia!
Estes soldados falam a minha linguagem.
-Isso: pontapeai, desancai essa estúpida raia
míuda! Para que se cále, desapareça, saia
da minha vista e não empeste mais a aragem!
Entro por fim numa cidade do Far-West
(sempre tive a mania dos caubóis)
onde, por acaso, até grassa a peste
e, recentemente chegada de Budapeste,
sorri-me uma bela ruiva de cabelo aos caracóis.
Acompanhado pelo seu estojo
o médico socorre a multidão.
É declarado o Estado de Nojo,
vários cadáveres são levados de rojo
até ao deserto, onde abutres os comerão.
E também a minha escolta cai, vitimada.
Só eu continuo de pé, pérfido porque imune.
Livre, encaminho-me para a balustrada
donde a ruiva me fita, e os seus olhos de esmeralda
ao poisarem nos meus parecem lume.
Tais cabelos de fogo recordam-me alguém...
Beijo-a e surge-me, desfocada pela Distância,
a imagem de brincadeiras em casa de minha mãe
com uma menina que eu raptava e fazia refém
no Far-West da minha Infância.
Passaram-se anos e eu sofri em excesso
através de estranhos mares, luas e sóis.
Atingi o limite - nada mais peço,
pois eis que finalmente regresso
à minha menina dos caracóis.
Dir-me-eis: "Foda-se, Dragão, este é o poema mais escabroso que alguma vez li!"
Dir-vos-ei: "Lestes, então, bem pouca e fraca coisa, ó coisinhas insossas!...".
Mas se o conteúdo é escabroso, concedo-o com alguma vaidade, já a língua em que está escrito de escabrosa não tem nada e é, direi mesmo -e, juro, rebento as fuças a quem me rosnar o contrário! - a mais bela do mundo. Nós, portugueses, somos o povo mais rico ao cimo da terra:
Temos a maior auto-estrada para o Espírito. Só é pena não termos mapa, nem bússula, nem, o que é bem pior, espírito.
Suponho que faz parte do leque das supremas ironias transcendentais: dar nozes a quem não tem dentes; ou uma língua destas a uma horda de Chim Panzés. E PanZés, ainda por cima, Marias.
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