De roda do féretro do poeta afadigavam-se, como é do protocolo, abutres e carpideiras. Calculo que alguns grandes sáurios também. Iam-se servindo à vez.
A certa altura, como nem ao diabo lembrasse, lembrou ao Cadilhe, insigne contabilista. À passagem do microfone, aproveitou para largar, sentencioso, o seu despejo:
«Figura ímpar... o maior poeta português de sempre!..." (não está ipsis verbis, mas foi qualquer coisa como isto).
Em seu redor, uma vaga de assentimento repercutia os queixos. Compreende-se. O cadáver fresco é sempre o melhor. Há que aproveitar enquanto é notícia. Tanto quanto a carcaça em decomposição, a televisão atrai as moscas.
A mim, todavia, refém duma grandessíssima estupidez, o peregrino veredicto mergulhou-me num torvelinho de sentimentos contraditórios...
Por um lado, congratulei-me e quase rejubilei: afinal, é de poesia que os nossos economistas percebem. (O que, confesso, não me surpreende: Sempre achei duma inultrapassável grandiosidade lírica os nossos Orçamentos Gerais do Estado. Para já não falar na Saga do Défice, só equiparável, havemos de reconhecer, a uma Ilíada ou Odisseia. Aliás, se ninguém de real talento e mérito se apresentar, ainda um dia destes me aventuro eu, fardado de vate, para escrever a Defisseia. Não podemos privar a posteridade dum tal canto.) Mas, por outro, desabei, com estrondo, numa enorme perplexidade: "maior", o poeta, em que sentido? Era o mais alto? Tivesse fracassado na poesia e, facilmente, teria conquistado taças e títulos no basquetebol? Ao esticar o pernil, alcançou dimensões inauditas? Enfim, sempre misteriosas estas medições e arcaboiçaduras de última hora.
Em terceiro lugar, e para remate do turbilhão mental em que aquelas revelações me haviam lançado, indignei-me com a leviandade das pessoas e bradei em pensamento:
"Ingratos! Gente de memória curta! Frívolos! Volúveis! Agora é o Eugénio o campeão, hem?!... Já se esqueceram do Ary dos Santos?!..."
3 comentários:
ahahahah que grande maldade ":O))
Os comentários de regresso! Aproveito então para frasear a minha gargalhada matinal. :)
Welcome! Bienvenu! Willcommen! La la la la...
O filme era o Cabaret de Bobo Fosse e foi o que me lembrei ao ver o regresso dos comments.
Espero que não haja ruído, neste comentário, pois a intenção é boa.
Tenho-me rido, com vontade, ao ler alguns dos teus postais mais recentes.
O do JPC então, é de gargalhada assegurada!
Algumas das entradas do D. estão bem apanhadas.
Mas isto de vir para aqui só mandar elogios só pode entender-se se forem mesmo merecidos...ahahahaha!
Quando não forem e se estiver me maré, também ficas a saber...se ainda houver espaço de comentários e liberdade de espírito para os escrever.
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