domingo, janeiro 25, 2009

Epístola à Pussy

«(...)Mas é só verdadeiramente durante a revolução que o carlin se estabelece em Inglaterra. Depois da tomada da Bastilha, ele atravessa o canal da Mancha com a aristocracia emigrada; e tendo encontrado enfim uma terra em que o povo se não considera feito do mesmo osso que a nobreza e acha até excelente que rasteje no enxurro enquanto os Lords beberricam nas nuvens - o carlin torna-se o pug, faz da Inglaterra a sua pátria, e fixa-se confortavelmente, e para sempre, na paz luxuosa dos castelos, ao abrigo da democracia e da blague.
Foi assim que o carlin desapareceu da França. Hoje constitui uma antiqualha. Se por acaso ainda se encontra, é n'alguma silenciosa rua de vila dormente de província, seguindo tropegamente uma velha marqueza de caracóis brancos, que, encolhida no seu mantelete de franjas e cosida com os muros tristes dos conventos desertos, se vai arrastando para o Lausperene...
O pug é hoje, pois, um cão exclusivamente inglês, desprendido da sua pátria francesa, podendo simpatisar com ela ou detestá-la segundo uma impressão pessoal, sem que na sua clara razão actuem ou influências de origem ou recordações sentimentais. Para o pug, o francês não passa dum estrangeiro: e seguindo os hábitos da nação que o perfilhou, ordinariamente ladra-lhe. Por isso esta carta de D.José me parece um documento sincero e instrutivo. E aqui a transcrevo, com as suas incorrecções, os bruscos resumos, as generalisações excessivas, em que se sente o animal que pensa por grosso, sem as nossas distinções esmiuçadoras, a delicadeza crítica das nossas meias tintas.

"Pussy amiga. - Aproveito a ocasião em que o nosso amo foi à biblioteca, lugar de sabedoria e de solidão, onde eu não sou admitido para te escrever o que penso desta terra de França, como t'o prometi ao deixar a Inglaterra, n'aquela manhã em que fazia um nevoeiro tão triste...
(...) A primeira impressão que me deu a França, Pussy, foi de uma adorável variedade, proveniente talvez da democracia. Tomo, por exemplo, as fisionomias de cães. Em Inglaterra, nós estamos divididos em cinco ou seis raças isoladas umas das outras como castas da Índia, sem convivermos, sem nos cruzarmos, inconciliáveis, e quasi hostis. O resultado é que, em cada classe, o tipo social inicial reproduz-se em todos os seus indivíduos, fielmente, fotograficamente, com uma monotonia intolerável. És tu capaz de distinguir um cão fox-terrier dos outros oito mil ou dez mil fox-terriers que honram a nossa pátria? Não. Todos são brancos como este papel, macios como casimira, do mesmo tamanho, com o mesmo tôco de rabo curto e direito, uma malha castanha no focinho, o ar ligeiro, honesto e terno. Parecem cunhados pelo mesmo molde, como as libras; - e o homem que perde o seu cão não o pode distinguir mais do cão do seu inimigo.
Por outro lado também, como em Inglaterra todos os homens da mesma classe têm o mesmo feitio e côr de suissa, e usam exactamente o mesmo casaco, e trazem na botoeira a mesma flor, e calçam luvas da mesma côr, e caminham com a mesma elasticidade de passo, e falam com o mesmo timbre de voz, e saúdam do mesmo modo brusco, - se um cão perde o seu dono não o pode diferenciar da multidão uniforme. Dirás tu que o deve conhecer pelo cheiro. Difícil, Pussy, muito difícil! Todos os homens em Inglaterra têm o mesmo cheiro, que é composto de sabão Windsor, tabaco Maryland, água de Colónia e carvão. Dirás tu ainda que um cão pode interrogar seu amo e diferenciá-lo pelas opiniões: não porque todos os ingleses têm as mesmas opiniões e exprimem-se pelas mesmas frases. A posição d'um cão n'este caso é estonteadora; e é por isso que temos muitas vezes pensado em pôr coleiras a nossos amos.
E o mesmo sucede com as casas. (...)
Nós em Inglaterra afirmamos, com a Bíblia apertada contra o coração, e a garrafa de gim escondida debaixo da mesa, que a moralidade dos nossos costumes é superior à de todas as nações do Universo. Tu sabes, Pussy, com esta púdica afectação nos parece divertida, a nós cães e gatos, testemunhas permanentes da vida íntima, diante de quem os seres racionais, no seu imbecil orgulho e supondo que somos mudos, não se dão ao incómodo de ter recato... A Inglaterra é uma pocilga de devassidão. A França é um salão de libertinagem. Pocilga, Salão - a diferença está aqui. O pecado, entre estes amáveis franceses, é amável também; doura-o um estouvamento moço; tem no fundo uma ponta de sentimento ou de sensibilidade; e no beijo mais superficial há sempre bastante emoção para, sendo necessário, fazer uma lágrima. Em Inglaterra o pecado é bruto e cheira a aguardente.
Nós dizemos também em Inglaterra que os franceses, cão e homem, tendem a vadiar, não apreciam o encanto do lar como ele se aprecia aí em Inglaterra, e não têm como aí a veneração das cousas domésticas. De todos os nossos alardes, Pussy, é este decerto o mais desfaçatamente impudente. Tu sabes, Pussy, como aí os nosos amos, apenas se acende o gaz, largam tão direitos e tão lépidos para o club - como estes aqui para o botequim. (...)
Há decerto, entre nós, sujeitos que, de vez em quando, passam a noite em chinelos ao canto do seu fogão: - mas tornam eles por acaso, com a sua presença, a sala mais animada e mais alegre o serão da família? Nós sabemos, Pussy, como se passam essas horas sombrias, em que o tédio escorre das paredes, penetra pela frincha das portas, acumula-se nas pregas das cortinas... O cavalheiro, de cachimbo nos dentes, lê soturnamente o jornal, tendo ao lado o copo de cognac; Madame, de touca e broche de ouro, tendo ao lado o copo de cognac, lê desenxabidamente o magazine. De vez em quando pousam o papel e ralham; e se sucede viverem n'uma harmonia bem remendada, deixam cair a prosa e dormitam. Os filhos, se são pequenos, vivem desterrados lá em cima, na nursery, com a criada; o papá tem apenas a respeito deles a vaga ideia de que estão vivos, e continuam a consumir a sua copiosa ração de pão com manteiga. Se os filhos são crescidos, estão nas colónias ou no bairro vizinho, mas sempre fora de casa, e sem relações, nem por visita, nem por carta, com o lar de origem. Se são prósperos e ricos, o pai tira-lhes o chapéu, ou fala às vezes deles às senhoras; se falharam na vida, passam a ser para o seu progenitor como velhas caixas de sardinhas de Nantes vazias, destinadas ao lixo social. Por seu lado os filhos, se se não separam da lareira paterna, consideram negligentemente o pai como um mero dono de hotel, e nem pai lhe chamam, chamam-lhe governor, o governador; a mãe, essa, é boa para tratar da roupa branca, e é denominada the old woman, a velhota; e ordinariamente estas pessoas sentam-se à mesa, em volta do bule de chá, para dizerem uns aos outros coisas desagradáveis... No entanto, que está o cavalheiro lendo no seu jornal, o que está lendo a dama no seu magazine? Que só em Inglaterra existe o sentimento doméstico, e que só aí o lar é doce e unido! Ora n'isto é que nós somos admiráveis - na reclame. Atribuimo-nos majestosamente todas as virtudes, negamo-las aos outros com amargor, e esperamos que o mundo nos incense na nossa perfeição. E o mundo, ingenuamente, credulamente, incensa".»

- Eça de Queiroz , "Notas Contemporâneas"

Como vê, ó caro Arroja, o Eça partilhava connosco (consigo e comigo) a mesma antipatia pelos ingleses. Aliás, não lembrava ao diabo ir buscar um reputado francófilo e expô-lo no pelourinho por anglofilia. Lembrou-lhe a si. Mas nestas coisas é como dizia o Twain: "já a mentira correu meio mundo, ainda a verdade não calçou as botas".

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