sábado, março 10, 2007

Unanimismo e Saco-gatismo (rep.)

I. O Unanimismo


Não me venham com fascismos, comunismos, socialismos, social-democracias, liberalismos, nem quejandos estados febris da nação.
Este país nunca foi, em momento algum, ou por desnorte momentâneo que fosse, fascista, nem comunista, nem socialista, nem social-democrata, nem liberal. Desenganem-se. Acabem lá com as peixeiradas inócuas. Poupem-nos às basófias bacocas do costume, aos alardes de circunstância. Este país anda a ser, faz daqui a nada um século, única e exclusivamente unanimista. Se querem um nome para a simples doutrina política que por aqui medra e floresce, aí a têm.
Duvidam? Espreitem lá bem detrás da fachada: o PS é o quê? Socialista, social-democrático, social-liberal? Ora, é o que o secretário geral que ganhar eleições for - quer dizer, é soarista ou guterrista, por exemplo. E o PSD? A mesmíssima coisa: é sá-carneirista, cavaquista, barrosista, consoante a preia-mar.
De facto, mal lhes cheira a poder, os partidos transfiguram-se. Transformam-se em verdadeiras Coreias do Norte ou Albânias heróicas e sitiadas... Da noite para o dia, emergem, quais asteróides deslumbrantes e irresistíveis, os Grandes Líderes, os Guias Imortais, os Super-Homens do momento. Galvanizadas, histéricas, as massas prostram-se em adoração. Os confrades devêm acólitos, os companheiros, sequazes. A dúvida, a consciência, o amor próprio, a individualidade, desaparecem. São banidos. O formigueiro encontra a sua rainha; a colmeia a sua abelha-mestra. Os caprichos desta tornam-se leis da física; o seu olhar suplanta a luz do sol; os seus amigos e parentes próximos, por osmose e reflexo, sobem a luminárias omniscientes.
Invariavelmente, é este tipo de unanimismo que ascende ao poder e ao leme da nação. Dum casulo tecido com mil fios de sabujice, lisonja e hipocrisia invertebrada, irrompe, num belo dia, uma impante crisálida ditatorial: Um nano-Kim Jong Il, um quasi-Fidel, ou, para sermos patriotas nesta matéria, um micro-Salazar. A partir daí, é todo um ciclo que se reinicia...
Por uma temporada, de quatro a oito anos, o país sente-se revisitado. Mas apenas por uma sombra, um espectro, um simulacro do pujante autocrata de outrora. O país também não se queixa: ele próprio já não passa, frouxamente, duma sombra, dum espectro, dum simulacro de país. Em suma: o fantasma mirrado e diminuto de Salazar vagueia, feito alma penada, pelo simulacro de país. Como num estado zombie. Como em transe de governação vudu.
Assim, tudo somado, a nova e apregoada "democracia representativa", não transcende muito o multiplicar de pequenas autocraciazinhas sufragadas. Como se o vício arreigado, a mania empedernida, se rissem, em possessão ambulatória, de todo e qualquer arremedo de cura ou reeducação. Inexpugnável, o unanimismo, é, ainda e sempre, o mesmo. Apenas as suas figuras de proa são cada vez mais minúsculas, insignificantes, efémeras. Na verdade, a diferença que vai do xarope despótico vitalício ao iogurte político de validade cada vez mais limitada. Do Salazarismo ao micro-salazarismo.
Não admira, pois, a crise. São tempos de precariedade, estes: até os títeres são contratados a prazo. Recebem à tarefa. Ao frete.


II. O Saco-gatismo

Em contrapartida, mal se afastam do vórtice do poder, os partidos caem em si. Como que acordam dum pesadelo, dum sonambulismo demoníaco. Apeados da onda vitoriosa, ei-los que recobram a moral e a religião, a humildade e os princípios. Ei-los que correm ao exame de consciência e à desintoxicação.
Ao mesmo tempo, todos ralham com todos, todos desconfiam de todos. Contam-se espingardas a cada esquina, afiam-se facas nos passeios pela noite fora. Sobretodos execrado, torna-se o, até aí, ídolo sublime, deus ungido. Rebentado o casco contra os recifes, naufragada a expedição, todos vêm cuspir e viperinar contra o timoneiro. Despenhado da glória, compete-lhe, doravante, carregar com a culpa. Toda a culpa.Os outros, livres por uns tempos da condição de insectos rastejantes, entregam-se à sua ocupação predilecta na oposição: fazer oposição. Não, propriamente, ao governo em exercício (quanto a isso, há que respeitar o unanimismo soberano, atávico), mas uns aos outros. A privação do tacho, acarreta a irascibilidade, a quezília, o resmoneio. Irrompe a sintomatologia típica da descompensação.
Uma vez no poder, o partido (a experiência histórica atesta-o) conduz o país à balbúrdia. Uma vez deposto, cai também nela. Retorna à origem, à matriz. Ao caos primordial e propedêutico.
A ressaca do unanimismo governativo é o saco de gatos, ou Saco-Gatismo partidário. Para que serve? Como a tragédia para os antigos gregos, segundo Aristóteles, tem por finalidade a catarse, a purificação das almas, o exorcismo dos demónios. Para que, chegada a hora, mal a preia-mar regresse, o espírito do mamífero, limpo e disponível de novo, esteja mais uma vez pronto para ver-a-Deus e para abraçar, em fervor babado, todo o unanimismo deste Mundo. A metamorfose, neste caso -e ao contrário do romance de Kafka-, é voluntária. E almejada com a maior das ansiedades e expectativas.

2 comentários:

Anónimo disse...

Hoje mais uma vez te tiro o chapéu.
A chatisse é que estou de acordo a 100%, o que não tem piada nenhuma.
Um abraço.

joao de miranda m. disse...

Finalmente descobri um local de referência na blogosfera: este.