Andei a recapitular os arquivos e descobri lá algo que convém ir repetindo, até à exaustão. Hoje, eu não diria melhor. Se bem que, um ano depois, há que dizê-lo de novo...
O que é preocupante, mesmo preocupante, na cultura deste país -sendo que desta deriva tudo, das artes às políticas, passando pelas ciências-, não são os analfabetos numerosíssimos, nem os semi-analfabetos ainda mais pululantes. Esses, todos esses, regra geral, lá se desenrascam, fazem das tripas coração, transcendem-se conforme podem. São conhecidos até casos meritórios, quase miraculosos. Não, a minoria sabichona, doutora, vanguarda da classe analfabeta, essa, em números galopantes, é que impressiona, alucina. Estudaram, aprenderam as letras, meia dúzia de números; infestaram, em regime de manada, universidades, faculdades e politécnicos. Mestraram-se e doutoraram-se, alguns, os piores (regra geral os pajens sabujos, as cortesãs, os acólitos). De aprendizes do servilismo, da papagaeira, da mimese ao pior nível da tropa macaca, tornaram-se mestres, campeões. A praxe virou escola e, por fim, a toque de rasgos inteligentes dignos de sargentada marteleira, de açougueiros alfarrabistas, a escola virou academia, antro, seita exotérica. E o problema -do país, da cultura, deles próprios-, foi precisamente esse. Mais valia que tivessem porfiado pela via honesta, agarrados à enxada ou à herança; fazendo algo de útil à comunidade ou pagando honestamente pelos próprios vícios, pelas putas. Sempre ginasticavam o corpo, a musculatura, o esqueleto, ou a gaita. Sempre poupavam o ralo da História e os cofres do Estado. Exercitavam o que tinham, desenvolviam as faculdades intrínsecas que os preenchem. E não, ao invés, de través e revés, aquilo que não têm, nem querem ter e só lhes serve de móbil para cultivar a raiva a quem tem; e o despeito, a inveja, o temor de ser descoberto, desmascarado, apeado do trono usurpado. Valia mais, mil vezes mais, serem dignos analfabetos do que infames analfabrutos. Gentalha que se serviu dum privilégio, do suor e (quantas vezes!) do sacrifício de pais e avós, do investimento público e nacional, enfim, não para burilar virtudes ou qualidades, mas apenas para aguçar egos, refinar vilezas, aprimorar defeitos ou destilar vaidades bacocas. Antes pobres de instrução, que indigentes de espírito! Assim, nem eles se cultivaram nem as batatas e os campos, que era o que lhes convinha cultivar, pois é a cultura máxima que alcançam e a pátria deles requeria. Pior: agora, é a cultura do país que lhes está entregue a eles (e elas), como o país está entregue à erva daninha, ao mato agreste e aos silvados. Resultado: grassa uma dupla desertificação: a do interior do país e a do interior das cabeças de quem era suposto dirigi-lo. Quer dizer: o deserto de ideias propagou-se aos campos do país. E aos mares. E aos céus. É o vazio em toda a parte. Nem sonhos, nem esperanças, nem vergonha, nem tino, nem ponta por onde se pegue.
Não contente de tocar rabecão, o sapateiro cismou de ser o maestro; não satisfeito com a missa, o merceeiro subornou o padre e trepou ao altar; e o marialva, não lhe bastando ir às putas quis também ir à nação: capacitou-se que se metia a gaita também podia meter a cabeça. Ou seja, meteu na cabeça a gaita, com todas as suas infinitas pintelhices, para gáudio e recreio das suas atávicas e cristalizadas faculdades - a bicefalia invertida e congénita, nem mais-: fornicar com a de cima e raciocinar com a de baixo. Entretanto, a labreguice, que distribuída pelos campos chega a ser pitoresca, amontoada nas cidades, atravancando e emporcalhando academias, salas de espectáculo e ministérios, redunda em mera poluição humana. Coalho pastoso, superficial, flutuante e nauseabundo. Faz as vezes da nata, pois faz. Mas uma nata negra, espessa, mortífera, como a dos grandes derrames. A ocidental praia, convertida em sepulcro de pescadores e marinheiros, está coberta por um manto fúnebre desses.
O badameco veio ser doutor, o borra-botas agora caga-postas. A macaquear os cavaleiros de outrora, também transita por aí armado, empertigado e fátuo. Não com a espada, mas com o grandessíssimo pingarelho. E onde quer que meta o pensamento, com a tramela no encalce, não demora o eco da caverna retumbante que lhe faz oca a rocha craniana. Na ausência de ideias próprias, vale-se do bedelho que mete por toda a parte.
E é esta a tropa fandanga que está aos comandos do regimento... Depois, venham-me cá dizer que o que faz falta é formação, ainda por cima unversitária... Quando o que existe é um sistema instalado de deformação, de torção, de selecção de moluscos e imbecis! Quando a puta da máquina está sabotada, transviada, invertida: não produz homens -quanto mais sábios, pioneiros, espécimes elevados-, só vomita chouriços. Cadáveres adiados que já mal procriam. Porque primeiro há que tratar da carreira, do ego, do cabrão do coiro e respectivas manias -essa novel agremiação de moléculas, joint-venture de células prometida aos vermes, e que os vermes vão já devastando por antecipação! Isso e, mal brotam da cloaca doutorante, porem-se logo a fungar a brisa, a escutar o murmúrio, à cata do prostíbulo onde melhor se possam vender.
Formação? Este país, a nível de mentalidades, está a precisar é dum valente clister!
Essa sim, essa é que é uma prioridade absoluta. Ou, no mínimo, uma dose maciça de anti-helmínticos.
...
PS: E, caso não tenham percebido, não é uma questão de berço nem escola. A massa é igual em toda a parte. Só a embalagem é que muda. O espírito não se adquire nem se herda. Nasce-se com ele, como se nasce com braços e pernas, cabeça e testículos (ou ovários). Ou nasce-se sem ele. Mistérios de Deus e da Natureza. Ide perguntar-lhes porquê. Interrogar é já um claro sintoma de inteligência; tal qual debitar ininterruptamente opiniões e anedotas alarvajadas o é da ausência dela. Sobretudo, quando se mascaram as anedotas de leis, discursos, pareceres técnicos ou tratados eruditos.
Não é nenhum drama não possuir inteligência. Drama mesmo, tragédia absoluta, é promover esse vácuo a espírito. Não é por se multiplicar múltiplas vezes o zero que se alcançam números formidáveis. A incontinência ainda não é uma forma de génio. Por muito que a vendam a peso de ouro.
15 comentários:
Concordo com a tese, em geral. Desde 1975 até esta parte, este país que nós temos e onde nos entretemos, tem vindo a recuar na inteligência em geral e quanto aos particulares, é cada vez mais raro encontrar um lote decente em que nos possamos rever com algum orgulho lusitano, do antigo e que alguns ainda se lembram.
Este discurso, para os nefelibatas do costume, ressoa a saudosismo e à falta de melhor enquadramento ( et pour cause), costuma ser acantonado como fassista e outros mimos para os quais cada vez tenho menos paciência.
Caro dragão, digníssimo, perspícuo e sagaz intelecto é o de V. Ex.ª, só uma miudeza, a rigor uma mesquinharia, me escapa e importuna aqui a orelha, põe V. Ex.ª, acaso, os binóculos quando a si próprio lê? Não que discorde de V. Ex.ª, quem seria eu para o atrever, mas, revirados e revolvidos os arquivos, falharam-me as importantes questões que certamente por aí semeou, mas não embraveça, ter-me-ei com certeza enganado na porta, é que opiniões e anedotas alarvajadas, de travo azedo e ressabiadas essas saltam aos olhos.
Só pode ser engano, e vexatório engano, pois o arquivo revolvido era o de um cobiçoso, pulando baba e vinagreira no pobre laço de seus menos próprios talentos. Por hora, fique V. Ex.ª segura de que não desistirei, talvez da próxima os arquivos venham a ser os certos.
Este seu sempre cativo,
Mister Magoo
Ressabiado? Cobiçoso? Pulando baba e vinagreira? Como se atreve V. Exª a assacar tamanhas aleivosias a este cordato e beigno dragão que tão altos serviços tem prestado à nação no exercício da disciplina que lhe é mais cara - a crítica construtiva! Não percebeu V. Exª que se encontra na presença de um espirito abnegado e brilhante? Na presença de um português daquela cepa que já não medra por estas bandas? Ressabiado? É preciso ter lata! Que badameco o Sr me saiu!
D. Salcede
ganda posta dragão
eu não sei se se aplica ou não à minha pessoa
mas sabe como é, já JC o dizia, vê o cisco no olho do teu vizinho e não vejas o tronco no teu olho
um estilo fabuloso e umas verdades pelo meio, o dragão no seu melhor
Caro Magoo,
quanto ao estilo precisa de desbaste: dou-lhe, mesmo assim, 14.
Esforçou-se no vocabulário e, dado que procurou o feito de espelho, não desgostei de todo. No seu lugar, todavia, eu procuraria ser mais acerbo: em vez de "avinagrado", "ressabiado", "pulando baba", porque não "sulfúrico", "ascorabundo", "remando em bosta"?...
Caro Salcede, aliás Magoo disfarçado, aliás...,
Mais escorreita a prosa, melhorou do primeiro para o segundo passo, mas não lhe dou o 15 (que formalmente mereceria) porque, pura e simplesmente, me injuriou a dado passo: "Crítica construtiva"?!! Irra, eu aqui a torcer para que venha um super-meteoro e mande este cabrão de planeta, mais a sua maldita raça daninha, para o caralho, e vocelência sai-me com uma dessas?
"Cordato e benigno Dragão"?!... O seu paizinho, sim!?...
Leva 16. Pela ironia.
Discordo: a última frase (a culpa ser da falta de inteligência) não é a explicação do resto do texto. Há gente pouco inteligente que é muito bem formada e tem espinha dorsal. E há pessoas muito inteligentes que são uns canalhas de primeira. Eu diria antes que é, pura e simplesmente, falta de educação - aquela educação simples, de princípios básicos que se dão aos filhos em pequenos (mas o que sei eu?).
O texto é bom, Dragão, mas arrogante: como se o autor se colocasse à margem da maralha, elevando-se do lixo ao empurrá-lo para baixo (isto não é um juízo de valor, apenas uma constatação, não considero a arrogância um defeito e detesto a falsa modéstia).
Há falta de inteligência e abunda a inteligentsia.
A inteligência a que me refiro especificamente é de âmbito colectivo, se assim se pode dizer, porque nem sei o que isso será exactamente.
Porém, o que sei e quero dizer é realçar a inexistência de elites com credibilidade geral e que não sejam formadas nos altos estudos politico-partidários das sedes de partidos, agremiações, amizades nepotistas e afinidades grupais.
A inteligência nas engenharias e nas ciências concretas, existe em estado puro e disseminado pelas universidades e pelas empresas e pelas instituições.
A inteligência nas humanidades também existirá, embora o meu cepticismo neste campo seja mais alargado.
O que eu gostaria de voltar a ver e sentir como paradigma comum seria a seriedade na escolha de pessoas e na aparição natural e sem esforço de modelos e de teorias nossas, sem pagarem direitos de autor a estrangeiros.
Infelizmente, essa inteligência esvaiu-se aos poucos e mirrou nalguns casos, por falta de adubo que consiste no estímulo e reconhecimento público dos poderes públicos.
Estes poderes preferem quem diz sim, senhor ministro em detrimento de quem diz, não, senhor ministro, assim não quero mandar.
Por outro lado, na população em geral desapareceu já a noção de paradigma da excelência e por isso é que temos Fátimas Campos Ferreiras a passarem por génios da comunicação e do jornalismo e Vítores Constâncios a permanecerem em lugares de eleição restrita.
Temos a mediocridade ambiente que nos atapeta a existância quotidiana e não vejo forma de sair disto, porque o tapete é grande e "navegamos num ditoso mar de cágados"!
Retomando o dito draconiano, remamos em bosta.
Grande Dragão que foi borrar a pintura no PS!
Aos Mistérios de Deus e da Natureza que nos dão o espírito e o corpo não têm incumbência na obrigação dos papás em, ética e moralmente, firmar a espinha!
Cara Catarina,
Tem toda a liberdade de discordar. Contudo, pelas razões aduzidas, lastimo informá-la, mas parece-me que concorda.
E, julgo eu, não se tratou de empurrar o lixo para baixo, (debaixo dele estou eu, estamos muitos) mas clamar para que o lixo saia de cima. Se é arrogância pensar que não se está a clamar no deserto, então sou arrogante. Ou optimista frugal, para quem preferir.
Até porque não acredito em panaceias fast.
Mas eu estava de acordo com a análise da generalizada falta de dignidade e de honra, não estava era de acordo com a explicação que entendi ser a falta de inteligência. Se afinal eram os princípios, então, sim, estamos de acordo.
'Optimista frugal' é uma expressão bestial. :)
BRAVO, Dragão, BRAVO !
Completamente de acordo, eu não diria melhor... Aliás, confesso que invejo (um bocadinho só, mas invejo) a sua destreza intelectual e a sua pujança literária. Por isso tb. Parabéns.
A questão agora é: - que vamos fazer com este país? Esperar que alguém tome conta ?........
Eu, sem saber o que fazer, vou lendo uns Dragões, que ainda os há!...
Não sei… até me arrepiaria postar um pouco acima. Benigno o Dragão? - meu caro Dâmaso! Consegue exagerar! Chame-lhe isso, chame. Olhe que ódio é ódio e rancor é rancor. O resto é amor de mãe ou de Mujahedin. Mas concedo. Será português de velha cepa, daquela que não medra mais. Acontece que estes animalejos, em tempo de crise estoiram em semente - tão benigna, escusado será dizer, como os progenitores. Posso ver mal, algo de que sou frequente vítima como saberá, posso estar inclusive a ler o blogue do lado, e, então terá com certeza razão, e publicamente darei o braço a torcer, desde que virtualmente.
Será talvez uma Juliana pós Prec, espoliada de todas as sortes - o seu azedume não é fruto do acaso, não será? Mas, ó Dâmaso, Julianas embalam Julianas, não concordará? Há limites, mesmo para si.
Ansioso por o ouvir.
Este seu badameco,
Magoo
Caro Sr Magoo, confesso, estou confuso. O Dragão acusa-me de ser V. Exª, o que óbviamente não sou e V. Exª acusa-me de exagerar! Isto começa a parecer-se com um diálogo de surdos. Assim não! O Dragão uma Juliana pós Prec? Uma sopeira verrinosa? Ah! V. Exª não vê (ou recusa-se a ver?) o que é para todos uma evidência: este Dragão tem a alma benigna e sensivel de um santo!
D. Salcede
Tem razao Dragao:
Comparar um clister e um tratamento anti-parasitario e de facto uma prova cabal de vazio craniano...
QED
Amen.
Sr. Dragão
Ainda não o conheço, mas pelo que vejo muito me apraz a sua escrita e os seus expostos pensamentos. Só uma correcção quem foi que lhe disse que existem escolas e universidades neste país? Desengane-se. O que existem são pavilhões, onde as criancinhas e os adolescentezinhos, vão passar o tempo, para não estarem na rua e entregarem-se aos maus vícios.Chamemos-lhes Campos de concentração lúdico-estupidificantes.
Boa Tarde!
O meu nome não interessa, porque se a nação teima em insistir na minha inexistência no sistema, então eu posso ser qualquer um ou uma ou metrum .
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