Como dizia um antigo e excelente professor meu (o melhor de todos, que eu me lembre, esse, que ainda tinha sido aluno de Heidegger), a palavra não é apenas um dis-curso, é também, e sobretudo, um per-curso. Transpondo para a nossa Língua, ela não exprime apenas uma forma de palrar; contém em si, sobremaneira, a memória e a história dum povo. Guarda consigo um mapa do caminho através do Tempo e do Mundo, um fio de Ariadne - as palavras, em suma, e aqui sou eu que há muito digo, sinalizam um rasto, uma pista, um horizonte (de partida e chegada, de entrada e saída do labirinto da existência). Mesmo a "comunicação" supõe e subentende uma "comunidade". Quando se degradam a mera dicção (e como é hoje regra, dictatum absoluto de amnésia, vazio e imbecilidade), pouco mais representam que tagarelice, num aglomerado ruidoso de cuspo. A palavra vale ouro. Mas, como a moeda, nestes dias, já não vale nada. Não por acaso, a palavra é o baluarte primeiro e escudo principal duma nação. Ora, o escudo, onde anda ele? O escudo moeda e o escudo palavra, pois... Portugal degradou-se a "euro"... euro qualquer coisa. O que não deixa de ser irónico: um povo que colonizou meio mundo para angariar fonte de subsistência, agora degradou-se a colónia como fonte de esmola. Já não usamos o escudo, e ainda usamos a Língua Portuguesa? A Pátria do Pessoa e, por sinal, a minha, é também a vossa?
Não me habitam grandes ilusões. A maior parte daqueles que se fazem passar (e passear) com BI (agora "cartão do cidadão") português não entendem o que eu digo, nem eu, tão pouco, registo o que eles dizem, porque, na maior parte do tempo, não dizem nem significam porra nenhuma. São meros repetidores de antenas difusoras, sem qualquer ligação ao passado, nem perspectiva digna ou sequer racional de futuro. E notem que racional já é algo muito básico. Ao alcance de qualquer máquina de calcular. A verdade é que nunca um situacionismo tão balofo e desenfreado foi tão patente o obsessivo. A situação, aliás, resume, por completo, o assunto. O país degradou-se e nanificou-se - ou melhor, nhanhificou-se - a um mero "sítio"... De resto, particularmente mal frequentado. As mais recentes vagas, quer de imigrantes, quer de turistas, só culminam e agravam a deterioração da comunidade. O situacionismo imbrica e decorre dum sitiamento invertido: os pseudo-defensores indígenas são os primeiros a abrir os portões, a demolir as muralhas e a convocaram, entre meneios e arrulhos de cio, a invasão e a colonização alienígena. Não se trata já apenas dum regime de alterne, mas também de envaselinamento compulsivo e generalizado.
Ora, como já aqui atrás expus, quando visitei o paralelismo entre palavra e moeda, a palavra homem radica no omoios grego, ou seja, no significado de semelhante: o homem é o meu semelhante. Mas, mais a limite ainda, é a semelhança enquanto comunidade/polis (no caso fundador de Esparta, onde os espartanos se autodenominavam como omoios) que importa assinalar. Há uma omoios-génese que prevalece e predetermina quando enunciamos "os portugueses". Onde essa homogénese principia por estar consagrada é na Língua Portuguesa. Outros factores, digamos assim, naturais - como território, etnia, clima, etc - seriam inconsequentes se não lavrados nesse "con-trato colectivo", ou seja, se não vertidos e documentados na palavra. É a forma como falamos, entre nós e para os outros, que nos faz humanos e portugueses, isto é, que nos semelha e diferencia. Isso e o partilharmos e tripularmos uma História. Que é sempre, por pertença a uma cultura, a manifestação de uma Odisseia. Dis-curso, per-curso, a palavra, é também con-curso. A odisseia - o caminhar - é um caminhar entre outros povos e com outros povos. Todavia, não em modo amalgamar ou tumultuoso, mas como num jogo, num certame, numa competição. Da mesma forma que numa sociedade ou comunidade, os membros se procuram diferenciar e distinguir, pela manifestação e conquista da sua individualidade, da sua autonomia, ou, no melhor dos casos, da sua excelência. Ser semelhante não é o mesmo que ser igual; quer dizer, a equalização é o ponto de partida, não é o ponto de chegada. Ainda segundo o paradigma homérico, partimos todos com as mesmas armas, mas a própria vida/batalha se encarregará de mostrar os mais valorosos - aqueles que se distinguem não só pelas suas virtudes, feitos e faculdades, mas também pelos desígnios superiores que transportam ou representam; e, sobretudo, pela beleza, firmeza e justeza como tudo isso exprimem através da fala. Afinal, são peões dos deuses, os homens. E a limite, no tal zénite da excelência, onde aponta a semelhança? Homero revela-o sem meias palavras: Aquiles, semelhante a um deus. E quem diz Aquiles, diz, simbolicamente, qualquer herói. Então o "homem" - o semelhante, o meu semelhante - é na medida em que realiza essa semelhança... a Deus. Quer dizer, na medida em que se eleva, em que se perfaz e manifesta. Não estamos assim a falar duma "abstracção" - o "homem" enquanto ideia, conceito, teoria; bem nos antípodas, estamos a falar duma realização, duma concretização efectiva, dum modo de ser nesta vida - nesta vida que é já o átrio da eternidade. Age como se agisses perante Deus, para Deus e Nele inspirado.
Não é fácil. Pois não, é dificílimo. Raia - digo mesmo: constitui, cada vez mais - o heróico. Pouco ou nada valeria se o não fosse. Mas ao contrário do ouro, da moeda e da palavra, não se tem desvalorizado nem vulgarizado com o decorrer e discorrer dos tempos e da História. Bem pelo contrário, deveio tesouro cada vez mais precioso. Porque, tão simplesmente, cada vez mais raro. A Lanterna de Diógenes continua a sua demanda no pino do dia. Onde está o Homem - um homem? A luz do sol, que Platão comparou ao Bem e à Verdade, é treva densa se o acto não realiza o ser. O ser, só que não o ser em abstracto, em absoluto, mas o ser humano enquanto indivíduo e enquanto relação: Aquele que é meu semelhante na exacta medida em que mais se distingue de mim. Porque ambos nos emulamos, como as árvores na floresta, pela luz da vida que nos guia e atrai do alto. Na Ilíada que é o mundo, segundo Homero, somos na medida em que nos distinguimos uns dos outros; na proporção em que não somos a cópia, o símile, a mera repetição ou emissão ordinária, mas o invulgar, o único, o extra-ordinário. Quer dizer, enquanto nos semelhamos aos heróis - aos nossos heróis.
Os gregos, na língua mãe da civilização, chamaram ao "raro" (neste sentido que aqui conferimos) paradoxos. Ora, o Homem é, tanto quanto um enigma esfíngico, um paradoxo. Porque se semelha na medida em que se distingue; porque escapa e ultrapassa a vulgaridade da opinião, da aparência ou da mera reputação -que são as várias acepções do termo "doxa" no grego; e porque, inerentemente, é/está através mas também para lá da linguagem. Quer dizer, não se distingue pela palavra se esta não estiver escorada e enraizada na acção. Um exemplo, talvez um dos mais emblemáticos da nossa civilização é a resposta de Jesus Cristo à pergunta de Pilatos: "O que é a Verdade?" Não respondeu por palavras. Mostrou-lhe a verdade na cruz. Conforme está escrito e nos lega e transmite a Palavra.
No texto original, aqui à minha frente: "ti estin aletheia? (O que é a Verdade?)
Ora, Lethe é um dos cinco rios que, na mitologia grega, medeiam entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos (Hades) . Lethe significa esquecimento - o rio do esquecimento. Uma vez bebida a sua água não mais a alma humana recordará a sua vida anterior. Tornar-se-á então a sombra melancólica e asténica daquilo que outrora foi. Aletheia - verdade, em grego - é, de facto, uma negação: a-lethes, ou seja, não-esquecer. É esse também o paradoxo: saber é não-esquecer. Mais que aquisição é recuperação; mais que progresso, é retorno. Não decerto por acaso, quando o pai Platão entende o caminho para a sabedoria como uma reminiscência, está a inserir-se numa tradição; se depois se evola e desancora para um "mundo das ideias", isso, à partida, constitui uma fuga à realidade, um desequilíbrio, uma arrogância desprezativa da matéria/corpo (a inversão disso, mas aproveitando-lhe o andaime, traduz o materialismo escatofórico actual - na demanda rastejante do "corpo ideal"). A barbárie ocidental, entretanto, significa essa morte da memória, esse assassínio compulsivo, venenoso, premeditado do passado, da fundação, da origem. Corporiza não apenas uma amnésia compulsiva, mas também uma afasia funcional - a incapacidade de relembrar implica a impotência em falar - o apagamento do passado determina a morte da história e, nesse velório sórdido, a impossibilidade do dizer, do mostrar o valor (a semelhança tanto quanto a diferença, do tal paradoxo humano). Ao reduzir a existência a um mero e perpétuo presente regurgitado, são as referências que se perdem, para qualquer tipo de discurso, percurso e concurso dignos desse nome. Um tempo destituído de passado mais não representa que um simulacro ruidoso de êxtase, uma repetição insensata do absurdo em curto-circuito e do absoluto em microgotas, em suma, uma informe estagnação. Um tempo que despreza o passado é um tempo que se descarta da própria essência do Tempo: um sentido.
Ao contrário dos primórdios dourados da civilização em que a sabedoria emerge da negação do esquecimento, nestes tempos tenebrosos e tanatológicos, o pseudo-conhecimento sustenta-se na sua afirmação peremptória e pesporrente. A cultura genuína pagava a sua dívida às suas origens, a barbárie oxidental apaga-a. Nada deve e tudo cobra, decreta ou confisca. E confina. A ninguém serve, porque de todos e de tudo se serve e avia. Encontra-se e esmera-se nos antípodas e na negação da odisseia. Não é o odos que respeita ou demanda, mas o para-ódos, entenda-se, a mera paródia da vida e do ser, do natural e do artificial. Da mesma forma que sacrifica o noos no altar do para-noos, ou seja, que imola o espírito aos caprichos da paranóia. A simples ratio, por implicação e gala, já nem sequer visita. Distrai-se, diverte-se o mais longe possível da mesma... aborreceu-se dela. É como o passado. Apenas entende o mundo como um afastar-se, repugnado, de ambos. Este extraviamento da odisseia se tivermos que resumi-lo a uma palavra não será difícil. Basta seguir-lhe o rasto ao próprio latim de origem. Do verbo aberrô - afastar-se, desviar-se do caminho, extraviar-se -, aberratio denomina isso mesmo: extravio, distração, diversão, alívio. Por conseguinte, um Tempo da Aberração. Que, repito, não frequenta nem o passado, nem o sentido, nem a razão, mas apenas se alivia - com estrépito e desplante - neles.
14 comentários:
Dragão,
leio-te como um burro em frente de um palácio, mais, como um burro extasiado em frente a uma catedral. Eternamente grato pela tua clarividência
Faço minhas as palavras do Cabriolex.
Uau!
A blogosfera pegou fogo!
O meu primo na Suíça diz que os filhos já não vão ä escola há meses, que está tudo a cair aos bocados e que antigamente havia respeito e não se via tantos homens de mão dada e aos beijos nos parques.
Um abraço desde os Açores , para o colonato .
Um grande início de ano.
Miguel D
É muito interessante essa formulação da verdade como negação do esquecimento.
Gostei desta lição.
Agradecido.
João Brandão
"A barbárie ocidental, entretanto, significa essa morte da memória..."
Morrerá, quando já não houver ninguém que lembre raízes e étimos. Ou para averbar em verbo humano o que ouvir do Verbo.
Parabéns pelo excelente apontamento.
(O seu professor aluno de Heidegger era Delfim Santos?)
Caro Dragão, aproveito para parabenizar o Dragoscópio pelos 20 vinte anos em 18/12 e especialmente para si, os meus sinceros votos de um 2024 com saúde e muita paciência.
Ao ler os seus textos, fico a pensar no tempo que perdi na universidade a ouvir/estudar e depois reproduzir vacuidades, que de pouco ou nada me serviram. Até a bendita Torre dos Clérigos, ex-líbris da Invicta e que em todos os livros da época figurava como obra do mestre Nicolau Nasoni, afinal não é bem assim, é da escola do dito, mas dele terá um rabisco ou mesmo nada.
Este aparte, para concluir que "ganho" mais em meia hora que degusto um dos seus textos, do que o proveito que obtive nos anos que passei na FLUP. Obrigada!
Feliz aniversário, bom ano. Tenho andado distraído a pastar nos prados do Moon of Alabama (não foi daqui que vi apontar essa lua?), onde se consegue, entre algumas bostas de avençados e/ou monomaníacos, colher umas folhas interessantes.
Uma delas ecoa um pouco esta sua nota, embora vá para as "saudades do futuro" em vez dos "United States of Amnesia" (Gore Vidal, outro eco seu, já sombra.)
Excerto daqui: https://darkfutura.substack.com/p/bones-of-tomorrow
""""
When Edward Bernays began designing his scripts to the modern reality show, he was at least conscientious enough to keep the behavioral nudges only slightly offset to our natural urges. Society’s mores were preserved, with only careful and periodic retouching to suit the needs of the Big Business showrunners.
Now the techno-pharisee-elect have increased the stakes. Owing to the urgency of their financial hegemony’s imminent demise they’re forced to fistulize our throats with megadoses of garbled programming to ensure the brood is complacent and disunited enough to _not_ entertain any inconvenient modes of redress during the pharisee-elect’s historic waning period. The poisoned covenant must endure at all costs!, lest the fabric of imposed reality be undone.
"""
Um Bom Ano para todos, ó caros leitores!
Tenho estado sem internet. Pelo que não pude responder entretanto.
Não era o Delfim Santos.
E sim, muito provavelmente fui eu o indicador do Moon of Alabama (que acompanho rotineiramente).
Foram descobertos os túneis cavados pelos Judeus em Nova Iorque situados por debaixo da Sinagoga em «Crown Heights», «Brooklyn», onde foram encontrados colchões com sangue:
- Descoberta de túneis sob a sede de Chabad Lubavitch leva ao caos no Brooklyn
https://www.shorenewsnetwork.com/2024/01/09/tunnel-discovery-under-chabad-lubavitch-headquarters-leads-to-chaos-in-brooklyn/
Túneis de Nova Iorque:
https://twitter.com/aliifil1/status/1744575783081775187
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