quarta-feira, janeiro 10, 2024

Anabismotomia da Revolução - 1. No princípio era o nada; e no fim também.



 

 

«No princípio, quando a Revolução libertou os céus e a terra, a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo e o espírito das leis movia-se sobre a superfície do cuspo».

                         Livro do neo-génesis, 1,0-1 (segundo Ya-ya-vu, demiurgo dos yahoos)*


«É fácil afinal a matança! Toda uma classe aniquilada! Toda uma classe vindimada! É só arrombar portas abertas, e como elas estão comidas do caruncho!...»

                             Céline, "Mea Culpa" 


Comecemos pelo título. Conforme os leitores mais antigos sabem de ginjeira, nesta casa criam-se palavras. Criam-se, desmontam-se, investigam-se, inventam-se, escarafuncham-se, etc. Que significa então "anabismotomia"? Significa abrir as entranhas da coisa e espreitar lá para dentro, para o abismo. Posto isto, avance o bisturi!...

Eu ia, naturalmente, começar pelas ideias que terão estado na génese do portento. Locke, Rousseau, Montesquieu e todas essas lamparinárias de vão de século. Seria até fácil, para mim, dada a minha especialização, digamos assim, académica. Poderia até remontar a coisa aos sofistas do tempo de Aristófanes. Armava seguramente um lindo fogo de artifício, digno quiçá dum réveillon moderno, desses sempre prontos a engodar turista e basbaque paspalho, passe a redundância. Acontece, porém, um fenómeno muito simples: tenho infinitamente mais amor à verdade do que ao espectáculo. E mentiria descaradamente se repetisse aqui essa ladainha rançosa acerca das  ideias por detrás da Revolução. Porque, em primeiro lugar, jamais, em tempo algum, as revoluções germinam de ideias - resultam essencialmente de carências - económicas, morais, políticas, estéticas até -, e de desordens - mentais sobretudo, sociais eventualmente, criminais quase sempre, religiosas enfim; e, em segundo lugar, porque se fossemos à procura de ideias em Locke, Rousseau ou Montesquieu, debalde o faríamos. Debalde e alguidar, dado que mais fácil seria, sem sombra de dúvida, desencantar peixes no deserto ou virgindade num serralho geriátrico. Aliás, poderíamos até classificar, dum modo genérico, a história da filosofia ocidental como a história duma sucessiva e crónica falta de ideias, na Europa e colónias. Calcula-se que o stock ficou praticamente esgotado na antiguidade clássica. No melhor e mais radicalmente caritativo dos casos, poder-se-ia dizer dos filósofos da idade moderna e seus afluentes prévios o mesmo que Marcello Caetano terá dito da tese doutoramentosa de Soares Martinez: que em matéria de  ideias, as originais não eram boas e as boas não eram originais. Com a agravante de, para cúmulo, no caso da filosofia moderna, as boas na aparência serem geralmente más na essência.

As revoluções tratam de deitar abaixo qualquer coisa, edifício social ou situação política. Isto, segundo o folclore e teses derivadas. Na realidade, não é bem assim. Como Céline muito bem aponta na citação em epígrafe, os revolucionários, sem excepção, operam como arrombadores de portas abertas. Quer, dizer, a revolução não arromba, irrompe. Longe de qualquer acto de coragem ou valentia, antes manifesta um mero expediente de oportunismo. Todos nós, seres humanos, experimentaremos uma espécie de revolução no fim da nossa vida: na hora em que o nosso corpo entrar em falência, os vermes, micróbios e bactérias, secundados por toda a espécie de insectos subterrâneos limpa-sepultura, armarão sobre ele uma completa revolução. Acamparão em festiva assembleia. Resumindo, sempre que um organismo, biológico ou social, entra em decadência, colapso ou putrefacção, eis que a revolução se apresenta para tomar conta dele. Pode ser mais ou menos espectacular e aparatosa, mas será fatal. Acontece que o que leva séculos a criar e desenvolver, como é o caso, por exemplo, duma civilização, leva ainda algum tempo a extinguir e dissolver-se. Embora rápidos (note-se que rápido e rapace são da mesma família, primos íntimos) e sempre apressados, bem como tomados de seiscentos diabos e urgências, os revolucionários ainda levam o seu tempo. Os canibais sociais também cumprem preceitos, ora essa!... Até porque têm sempre mais olhos que barriga, mais cobiças que bandulho (não obstante toda a desarvorada gula que os preenche, locomove e resume). Todavia, e de certo modo, os revolucionários são um bocado como os homens do lixo: desempenhariam até uma função útil, se, a pretexto do lixo, não levassem, por arrasto e vandalismo infantil, tudo o resto. Apresentam-se a título do município, mas funcionam à maneira das catástrofes. A crise (por etimologia, a crivagem) descamba invariavelmente em enxurrada. Tudo isto engrinaldado com coroas duma salvação em saldos: o salve-se quem puder, que nunca vai além do safe-se quem puder. Por outro lado, voltamos ao início: nada daquilo expressa qualquer tipo de ideia, mas unicamente um arremedo de instinto, pulsão ou mero aleive. Não é fruto dum exercício mental, mas apenas duma gana visceral. Um bocado como certos mecanismos automáticos para as bandas do vómito ou da diarreia social. Escancarados os portões, desvalidas as muralhas, é todo um rebate geral à pilhagem, ao saque, ao massacre bíblico do indigenato. Sim, porque convém nunca esquecê-lo, o revolucionário é, invariavelmente, por delegação e fantasia alienada, o estrangeiro. Mais que o heróico implantador dalguma virtude endógena, desempenha o magarefe transplantador de qualquer éden recalcado e exótico. Lá bem nos fundilhos do íntimo, protagoniza a vingança iahvédica, isto é, alienígena, sobre as inesgotáveis Gomorras de ocasião. A revolução, caso nunca tenham reparado, é um subproduto, uma excrescência fétida do evangelismo de sargeta mai-los seus apocalipses de alguidar em loja de conveniência.  

Então, convém interrogar: como envelhecem, adoecem e colapsam as civilizações? Olhai à volta, que diabo! Estais a assistir ao vivo e a cores a qualquer coisa do género. Mas, de todo, há que reconhecê-lo, não é por uma qualquer indigestão, envenenamento ou abuso de ideias. Bem pelo contrário, germina dum alastramento, duma devastação, do vazio delas. A revolução, reforço e negrito, não germina da selva das ideias, mas do seu deserto.  E da lixeira entretanto nele instalada, em forma de aterro sanitário, a céu aberto. Sendo que o vazio não se manifesta apenas pela ausência, como também pelas suas comparsas do coro:  a frivolidade, a futilidade e a ninharia.

Aquando da segunda "Grande revolução" europeia - a revolução de Outubro, na Rússia - os agentes dissolventes já não precisavam de máscara angélica: nihilistas de focinho descoberto e mandíbula ostensiva, apresentavam-se como realmente eram, sem pejo nem rebuço. Por alturas de 1789, todavia, na Paris em véspera de açougue, o nihilismo era o mesmo, mas disfarçado de procuração em arreganhos de  tutoria... Do povo, claro; essa repentina abstracção da cobra. Era o nada na mesma, só que de peruca e intelecto postiço. Em Paris era ainda a não-classe; em Moscovo era já a classe eleita.

Mas que em que consiste, afinal, o nihilismo? Poupemo-nos a perífrases e paleios técnicos. No fundo, a coisa resume-se numa fórmula básica: nada é sagrado. E, bem pesada, compendia duas acepções: nenhuma coisa ou entidade neste mundo é sagrada, resumindo-se tudo a um presente, material, funcional e aparente; e sendo que nenhum sujeito ou objecto da ordem do Ser é sagrado, resulta uma espécie de consagração do nada, através do vazio moral, social, estético, espiritual e político. Sim, desembocamos no completo mundo às avessas, onde a pura criação cede lugar à pura destruição, onde o nada devém tudo. Por outro lado, o "nada é sagrado" resulta no "tudo é insignificante". E é aqui que, por assim dizer, as coisas começam a ficar (ainda mais) interessantes. É que erradicar o sagrado do mundo implica o esvaziá-lo, ao mundo, de todo e qualquer significado. Entramos no império da banalidade, da vulgaridade, ou, como é já apanágio do nosso tempo, do lixo adiado que se idolatra e trafica (numa espécie de pseudo-sagrado efervescente, instantâneo e turbo-descartável). Tudo na vida deixa de ter um valor real e passa a ter um preço. O cosmos nanifica-se e nadifica-se a um mercado; o mundo a uma loja; o homem a um forçado consumidor de efemerdas e efemérides.

Ora, como é óbvio não se chega a este extermínio completo do sagrado duma assentada. Foi coisa para séculos, gradual, insidiosa, perversa, até porque a inversão também cumpre uma lógica, também tem um itinerário, também deixa uma pista. Não se salta, por exemplo, duma natureza  sagrada, enquanto fruto da criação divina, ou do cosmos vivo, para o nada (e o neo-caos seu avatar) de modo instantâneo. Não foi por golpe de mágica apenas, por muito negra ou delirante que fosse. Disso, desse processo esboroante, trataremos nos postais seguintes. Ou seja, do tal caruncho que corroeu os portões e carcomeu as vigas, os pilares e as traves mestras. Pensem, não obstante, na Reforma, em Espinoza, Descartes em larga medida, o mecanicismo subsequente, e por fim, Locke com Rousseau a cavalo, mais os ceguinhos iluministas em romaria de luze-cus... De que trata de cuidar, afinal, toda essa peregrinação dos aflitos? Varrer o sagrado da cidade; e da igreja, nem mais. Urbe et orbi. Por um rasgo grandioso de filosofia? Precisamente o contrário: por um despejo, reiterado e aleivoso, de filosofobia. Com todas as sacholas, pingarelhos e escova-pentelhices disponíveis e imaginárias!... Aliás, fazer o inventário exaustivo das farândulas e trampolinices que conduziram à Revolução de 1789 (e derrocadas subsequentes, até ao oxidente actual), além de requerer um estômago de ferro e uma paixão de entomólogo, constituiria, por pleno direito e forma, bem como coroa de louros para o Hércules que a lograsse, uma História da Filosofobia Ocidental.  Sim, e em Apêndice ao Compêndio, com toda a legitimidade clínica, uma Monografia psiquiátrica intitulada: "Esquizocidência, uma regressão mental colectiva." 


* - Conferir "As Viagens de Guliver", de Jonathan Swift 

PS: Filosofobia não é exactamente um sinónimo de sofística, mas não anda muito longe. 

7 comentários:

Anónimo disse...


“Bem pelo contrário, germina dum alastramento, duma devastação, do vazio delas”
Pois vejo exactamente ao contrário. O abismo actual resulta precisamente da imensidão de ideias propaladas e da insanidade em elevar cada uma delas a poder. Portanto a ditadura de baixo para cima. A pior e mais insana forma de governo de uma civilização.

E como invocou a repulsa no amor à sabedoria (filosofobia), estes dois tercetos de uma poetisa consumida pelo amor:

“O que há depois? Depois?... O azul dos céus?
Um outro mundo? O eterno nada? Deus?
Um abismo? Um castigo? Uma guarida?

Que importa? Que te importa, ó moribundo?
- Seja o que for, será melhor que o mundo!
Tudo será melhor do que esta vida!...”

Anónimo da poesia

passante disse...

Notas soltas:

- O Prof. Caetano era cliente do Dr. Johnson? (mais ou menos, cf.
https://quoteinvestigator.com/2013/06/17/good-original/ )

- Acho meritória a tese de que as revoluções acontecem a regimes doentes. Será que os que não têm revoluções são saudáveis?

- "o stock ficou praticamente esgotado na antiguidade clássica." Vejo que no balanço entre modernos e antigos do Montesquieu põe o peso no antigo. Tinha curiosidade de saber onde marca o zénite.

Vivendi disse...

O Dragão está no saber imortal perante o colapso mortal da civilização ocidental.

Deus o guie na luz da verdade.

Ninguém sabe em plena lucidez se ainda existe retorno ou caminho alternativo à fatalidade, mas pelo menos estamos aqui a encarar o Touro pelos cornos e prontos para belas touradas filosofais.

muja disse...

Em relação com a pergunta do passante, também tenho curiosidade de saber como vamos passar pela revolução do fim da Antiguidade...

Figueiredo disse...

Mais uma prosa de topo.

Permita-me fazer aqui referência ao facto de já estar disponível o primeiro número da revista «Linha Dura» levada à estampa pela editora «Contra-Corrente»:

https://editoracontracorrente.wordpress.com/2023/11/08/linha-dura-1/

Recomenda-se uma vista de olhos pelos títulos lançados por esta editora.

«Uma Nação que traiu ou abandonou a sua própria história e cultura não só dificilmente se desenvolverá, mas também provavelmente será palco de uma longa série de tragédias históricas. É preciso ter uma posição clara contra o niilismo histórico.» - Presidente Xi Jinping

dragão disse...

«Será que os que não têm revoluções são saudáveis?»

Não necessariamente, meu caro. Nem essa inferência é forçosa.

No processo etiológico sempre em curso, haverão diferentes graus de avanço dos agentes patogénicos, externos e internos, bem como de debilitação ou fortalecimento das defesas naturais (e artificiais) do organismo.

Portanto, o melhor é irmos caso a caso. Aponte-me um em concreto que eu logo lhe passo o diagnóstico mais específico.

Mas deixo-lhe já uma pequena pista: às vezes, acordo com a inquietante sensação de que o capitalismo é um estado de revolução permanente. Publicitária, de certeza. E aí está um termo que eu sei que domina.
Já agora, uma dialéctica hegeliana de crise / banha do cobra-crise, e por aí fora, será que também marcha?...

:O)

passante disse...

"A burguesia não pode existir sem revolucionar permanentemente os instrumentos de produção", diz o profeta ;-)

https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/cap1.htm

(A tradução portuguesa é pedestre até dizer chega, o que fizeram do "all that is solid melts into air" é de chorar)