quinta-feira, janeiro 18, 2024

Anabismotomia da Revolução - 3. Da revolução das estrelas ao caos perpétuo






 «Quanto mais se estuda a Idade Média, mais se nota o polimorfismo da influência platónica. Platão mesmo não está em lugar nenhum, mas o platonismo, em todos; digamos antes, que há platonismo por toda a parte: o de Dionísio, o Areopagita, e de Máximo, o Confessor, que passa por Escoto Erígena e cuja presença acabamos de perceber em Bernardo de Chartres; o de Santo Agostinho; o de Boécio, que comanda a obra de Gilbert de la Porrée, enquanto não aparecem os do Liber de causis e da filosofia de Avicena, que logo iremos encontrar. Esse parentesco platónico de doutrinas, de resto bastante diferentes, explica certas alianças, de outro  modo incompreensíveis, que por vezes contraíram. O facto reproduziu-se tantas vezes que quase poderíamos falar, na Idade Média, de uma lei dos platónicos comunicantes.»

      - Etienne Gilson, "A Filosofia na Idade Média"

A passagem do Logos grego para a Ratio latina é tudo menos pacifíca. Digamos, para sintetizar, que esta constitui uma redução daquele, um estreitamento. Todavia, é sobre a ratio latina que se processa todo o pensamento medieval, fundamentalmente teológico, que desagua na Razão de Descartes e, posteriormente, nos enciclopedistas e nos revolucionários de Paris. Ratio significa sobremaneira cálculo. Já se adivinha onde é que isto vai dar... Certo é que os gregos não dispunham de algarismos. O número - arythmos - era figurado por letras. A letra alfa, por exemplo, também simbolizava o número 1. Portanto, o mesmo alfabeto servia para a poesia e para a aritmética. Os romanos, posteriormente, terão um sistema de numeração diferente, que ainda existe, e no meu tempo (não sei se ainda assim é) aprendíamos na escola primária. Mas nem os gregos nem os romanos dispunham do "zero" (0). A linguagem, literária ou aritmética, designava necessariamente alguma coisa. Ora, o nada (qualidade ou quantidade) é ausência, coisa nenhuma: nada tem para relatar ou contar. Consequentemente, também não dispunham da noção de "infinito", uma vez que esta decorre da própria sucessão inesgotável dos algarismos. E daí transvasa para o mundo. Pior, consideravam, quer o nada, quer o infinito, a serem ponderados, como aberrações e monstruosidades do próprio pensamento. Extravasavam do Logos, careciam de sentido, como um buraco sem fundo. A perfeição significa qualquer coisa de excelentemente acabado, terminado, pleno, completamente definido e belo. De resto, o próprio termo Kosmos traduzia universo mas também beleza, adorno (donde ainda hoje a arte da cosmética). Conceitos como indeterminado ou ilimitado eram pensáveis para um grego, aparentavam-se até ao caos primordial, existiam mesmo na tradição filosófica - o apeiron, de Anaximandro. Porém, o infinito, como foi entendido a partir do fim da Baixa Idade Média, seria absurdo, no mínimo. Naturalmente, estamos a falar do pensamento grego na sua dimensão tradicional, da Mitologia a Aristóteles, no seu edifício principal, cujas ruínas, palimpsestos e fragmentos sustentaram ainda a Idade Média. Todavia, como em tudo, há sempre uma zona de sombra, marginal, exótica, de videntes de vão de escada e nihiloscopias fulgurantes. Encontramo-los no chamado período pré-socrático, da protofilosofia. Todos os pré-socráticos são, de um modo geral, "naturalistas", isto é, mais investigadores ou propectores da "fysis" do que pensadores sistematizados e conceptuais. Os principais são conhecidos: Heraclito e Parménides; Pitágoras. Deles sobreviveram à Antiguidade raros fragmentos. O que se foi sabendo e transmitindo a seu respeito foi mais por versão relatada de outros autores - Diógenes Laércio, Aristóteles, alguns outros. Dois deles, Empédocles e Anaxágoras, levantam já questões que beiram o "infinito" e falam já mesmo no "vazio", enquanto princípios causais da natureza. Porém, aqueles que mais impacto causarão num certo tipo de pensadores pré-modernos e modernos - Giordano Bruno e Espinosa, designadamente - são os atomistas - Leucipo e Demócrito. O que deles ficou foi exclusivamente por relatos de terceiros, Aristóteles em boa medida, que os cita e refuta. Um seu seguidor (dos atomistas), Epicuro, ecoou através de Lucrécio, nessa obra fetiche dos Murchos e ateístas militantes cá da praça: De rerum natura. Portanto, é uma moda com pernas para andar. Ao tempo deles, foram amplamente gozados por Aristófanes, nas "Nuvens", enfileirando com toda a sofística de estalo (aqui, entre nós, os proto-nihilistas e proto-advogados) na tribo dos corruptores de Atenas e apaniguados do "adikos logos" (o logos injusto). Platão, por seu turno, execrava-os; a Hélade nem os reconhecia como filósofos; e valeu Aristóteles  que, com a magnanimidade dos sábios (que dizia, logo a abrir, na sua "Metafísica", que "ninguém erra totalmente uma porta"), nos transmitiu considerável parte das destilações atómicas destes visionários. Pois bem, como raio, mesmo sem ferramentas, se enfiaram eles pelo buraco da Alice? A acusação de Aristófanes, em nome da Hélade, reverbera: adikos, injustiça. Haja medida, lembram-se?, prescrevia e avisava o Oráculo de Delfos. Pois, para eles, não há medida que resista: esfarelam-na até ao átomo. Estilhaçam e aspergem o cosmos de descomedidos multimundos e astrodesertos, numa efabulação cosmofórica não totalmente descabida de engenho. Diógenes Laércio dá-nos uma ideia:

«Leucipo sustenta que o todo é infinito... parte dele é cheia e parte vazio... Daqui surgem mundos inúmeros, e são dissolvidos de novo nestes elementos. Os mundos nascem da seguinte maneira: muitos corpos de todas as espécies de formas movem-se por "abscisão do infinito" para dentro de um grande vazio; aí se juntam e produzem um redemoinho único, no qual, colidindo uns com os outros e revolvendo-se de todas as maneiras... começa a separar-se, semelhante do semelhante. Mas quando a sua quantidade os impede de continuar a rodar em equilíbrio, os que são finos saem em direcção ao vazio circundante como que peneirados, enquanto os restantes "permanecem juntos" e, emaranhando-se, unem os seus movimentos e fazem uma primeira estrutura esférica. Esta estrutura está à parte como uma "membrana" que contém em si todas as espécies de corpos; e à medida que rodopiam, devido à resistência do meio, a membrana circundante torna-se fina, enquanto os átomos contíguos continuam a correr juntos, devido ao contacto com o redemoinho. Assim a Terra se gerou, permanecendo juntos nesse ponto os átomos, que tinham sido levados para o meio.»

De Hipólito, temos um testemunho complementar igualmente sugestivo:

«Demócrito defende o mesmo ponto de vista, que Leucipo, acerca dos elementos, cheio e vazio... ele falou como se as coisas que existem estivessem em movimento constante no vazio; e há mundos inúmeros que diferem em tamanho. noutros mundos não há Sol nem Lua, noutros eles são maiores que no nosso mundo, e noutros mais numerosos. os intervalos entre os mundos são desiguais; nalgumas partes há mais mundos, noutros menos; alguns estão a aumentar, outros no seu auge, outros a decrescer; nalgumas partes eles estão a surgir, noutras a desaparecer. Eles são destruídos pela colisão de uns com os outros. Há alguns mundos desprovidos de criaturas vivas ou plantas ou qualquer humidade.»

Não, caros leitores, isto não foi retirado duma notícia ao minuto na abertura do MSN: foi mesmo escrito há mais de dois milénios. E, a limite, não podemos em absoluto afirmar que não se fundava em nada  da tradição grega. Na verdade, até fundava, só que não era muito mais que uma perífrase da primeira frase da Teogonia, de Hesíodo. Aquela mesmo que serve de motivo à glosa do subtítulo deste blogue: "No princípio era o Caos". Eles atiraram-se ao dito e, bem calafetadinhos, trataram de divagar e viajar mentalmente nele (numa antecipação arcaica do método Júlio Verne, ou seja, em modo ficção científica avant la lettre). O que, em contrapartida, não foi o caso de Empédocles, um alucinado mais audaz, que à teoria juntou a experimentação da hipótese... Num infeliz mas coerentíssimo ensaio primogénito do método científico: saltou, inteiro e completo, na sua pessoa, para dentro do Etna. Entre perplexo e enjoado, o vulcão cuspiu uma sandália. Algum significado profundo isto deve ter tido. Que, já no caso dos atomistas gregos até nem era difícil de entender: não havia princípio, nem meio nem fim - continuavam no Caos e nunca de lá tinham saído (no que, de certo modo, até o próprio Dragoscópio pressagiavam, embora às avessas).

Humor não à parte, nada surpreende que Aristófanes, nas "Nuvens", fosse direito ao ossário da questão: 

« - Qual Zeus, nem meio Zeus!... Não digas asneiras: pura e simplesmente, Zeus não existe. (...)
   - Mas, então quem é que chove? (...)
   - São elas (as nuvens) que chovem, obviamente. (...)
   - E quem é que as faz mover? Não é Zeus?
   - Nada disso... é o Tornado [o tal redemoinho] etéreo.»

Não apenas a Teogonia corria, assim, o risco de ser substituída por uma simples meteorologia: era a própria religião dos gregos, desde os antepassados fundadores que ia no vórtice; e com isso toda uma nova moral e dinâmica social em acção. A partir duma nova religião, puramente materialista, ateia e delirante:

    « -  Ora bem, estás disposto, de agora em diante, a não aceitar qualquer outra divindade que não sejam as nossas, isto é, o Caos, as Nuvens e a Linguagem, estas três e só estas? »

Através dum Sócrates de conveniência, Aristófanes estava a ridicularizar a "ficção atomista".  O próprio termo "átomo" - a-tomos -, isto é,  não cortável, não mutilável, (em suma, não mais divisível) diz quase tudo acerca do meta-odos (na verdade, um para-odos) peregrinado. Mas se a matéria não é divisível ao infinito, como pode ser então ampliada ao infinito? Estaremos a falar do infinito vazio, a saber, o infinito nada? 

Não se pretende aqui, de modo nenhum, discutir os méritos ou deméritos absolutos de quaisquer destes pensadores. Mas apenas as diferenças - fundamentais e constitutivas - no modo como influem ou revelam uma perspectiva da realidade e, para o que nos interessa, do papel do divino e do cosmos nesta. Em resumo: Qual era a diferença paradigmática entre a cosmotomia dos atomistas e a Teogonia, de Hesíodo? É que esta relata e estabelece uma hierarquia, isto é, um processo na vertical, da profundeza insondável até à luz etérea - desde o Caos, as regiões tenebrosas, a Geia (terra mãe), onde habita toda uma variedade poética de seres divinos, semi-divinos, os heróis, os homens, e, por fim, o Olimpo, onde habitam os imortais, livres da morte e da Necessidade. O pensamento grego não é creacionista, na medida em que o cosmos não é obra demiúrgica (excepto no Timeu, de Platão), mas também não precisa: é criativo no sentido poético do termo. Ao pé da mitologia grega, qualquer outra mitologia oscila entre a pobreza e a miséria, estéticas, éticas e filosóficas. O Cosmos resultante dessa poesia é o que o próprio nome indica: Beleza, ordem.  Contrapondo a isto, que representa "o Todo é infinito, parte dele é cheia, parte dele é vazia" de Leucipo? Mais que uma mera incongruência intelectual, representa o varrer da hierarquia: em vez da verticalidade, a horizontalidade subterrânea duma qualquer astro-esvisceração; um chafurdar no caos e no absurdo; uma sopa de átomos em perpétua confusão e conflito, onde as causas e os princípios se resumem a uma estrita e obsessiva causa eficiente que incha, desincha e passa. Em vez dum cosmos, dir-se-ia, uma borbulha descomunal, exorbitante. A limite, um furúnculo infinito. Ora, nesta  regressão da bela e conveniente ordem orgânica a uma mera balbúrdia mecânica  onde o acaso impera mascarado de necessidade, acontece que não é apenas o sagrado, o simbólico, o mythos originário, a arché fundadora, que são apagados: é também a beleza, a poiesis (Arte) que desaparece. É também em nome desta que Aristófanes zurze. E esta dupla catástrofe constitui, digamos assim, o primeiro paradigma de metabolia (transformação) que importa reter. O Cosmos já não se funda no Caos: afunda-se nele. Dissolve-se. Não esqueçam este primeiro momento da zaragata inorgânica. Iremos revê-lo séculos adiante, no pós-Tomismo, quando, mais uma vez, os panteísmos imanentistas e ébrios do infinito se lançarem, contra Aristóteles, contra a Hierarquia Celeste e Terrena (onde a Teogonia foi doravante cristianizada), lançando-se na revolução das estrelas, que consuma a passagem do "Mundo fechado ao Universo Infinito" (Koyré dixit). A qual, de resto, com Descartes, marca também uma outra passagem deveras radical: do cosmos orgânico, vivo, ao mundo mecânico, antecâmara da máquina (o Homem-Máquina ou o Homem-Planta, de La Mettrie, manifestam já o claro sintoma do que virá adiante).

Voltando agora ao platonismo que a citação de Gilson, em epígrafe, documenta. Platão é duma vastidão imensa, não só no que influencia, mas, sobremaneira, na sua própria obra. Há, por assim dizer, vários Platões. Todavia, aquele que mais impacto terá na Idade Média - através de Santo Agostinho, Escoto Eriúgena, Santo Anselmo et al - será o Platão do Timeu (o diálogo onde se explana o principal da cosmologia platónica). O mesmo Timeu que ocasionará, em larga medida, o neoplatonismo de Plotino; as Enéadas deste (com o seu Ser e respectivas hipóstases) que desencadearão, adiante, momentos sumptuosos como  o "De divisione naturae", de Escoto Eríugena e momentos menos edificantes com Nicolau de Cusa, o seu derivado Giordano Bruno, posteriormente, Espinosa e, deste, um ramal para Locke e outro, mais adiante ainda, para Hegel (da linha directa de Heraclito, via Plotino). É um bocado como as redes ferroviárias e viaja-se muito, com alguns descarrilamentos, colisões e trucidamentos por suicídio à mistura.

Disto tudo (e perdoem o manancial de referências), que questão capital está em jogo (que, mais à frente, estará na base do trampolim para o "assalto revolucionário"?  Dois conceitos: a transcendência ou imanência de Deus, ou do Divino, como preferirem.  Significa que ou o Divino está fora e acima do Mundo, separado dele; ou está nele e, latente, subjazendo ao mesmo. Portanto, ou age como espírito puro e perfeição absoluta (Aristóteles/S.Tomás de Aquino), ou age do interior da matéria, bancando o infinito (em rigor, o nada). Com Espinosa, é mesmo substância única do Universo infinito, e, em simultâneo, res cogita e res extensa, isto é, coisa pensante e coisa extensa. Para o mesmo pensador, que parte de Descartes para ir ainda mais para baixo, o corpo humano é, como certos insectos colectivos, o corpo da espécie; e a alma humana a mesma coisa. A limite  - qual limite!, de facto, não existe indivíduo único - entenda-se, pessoa (com todas as letras) - nem enquanto corpo, nem enquanto alma, e liberdade também não. Pois se até Deus está dissolvido na matéria, numa espécie de chá do infinito, faria agora o homenzinho armado em pessoa humana!... Compreende-se perfeitamente o fascínio que Hegel tinha por ele. E de como Locke por lá prospectou.

Entretanto, é preciso pesar bem as consequências que este ataque à transcendência implica. Começo por uma breve e simples analogia para facilitar a compreensão: imaginem um jogo, duas equipas, no campo e nas bancadas, e, claro,  regras. No primeiro caso, necessariamente, há um árbitro, acima das equipas e dos adeptos, imparcial, soberano, com a função de zelar pelas regras, punindo faltas, marcando o tempo de jogo, assinalando os golos. No segundo caso, não há juiz, nem tempo de jogo, nem limites do campo, ou das balizas, e uma Coisa  que é também equipas, adeptos e brinca sozinho com um tabuleiro infinito pela eternidade. No primeiro caso, temos a divindade transcendente ao jogo; no segundo, a divindade imanente. E a repetição da metabolia paradigmática que já tínhamos visitado com os atomistas gregos: a terraplenagem da aristocracia orgânica pela república ou democracia (já podemos começar a chamar-lhe assim) mecânica. Onde se começa a acreditar, piamente, que o jogo pode e deve funcionar, à maneira dos relógios, regido exclusivamente por leis automáticas (sobre cidadãos autómatos em estágio para anjos). Mais que a uma ideia, o ataque dos iluministas a Deus, representa o ataque a uma hierarquia, a um princípio de autoridade e a um referencial - de justiça e liberdade - fora do sistema. Doravante o que se pretende implantar, na ponta duma carnificina inaudita que inaugura a era industrial, por via duma máquina soberana e triunfante (a guilhotina) é, exactamente, isto: um sistema que se auto-regula. Simultaneamente, um panteísmo jurídico, um mecanicismo absurdo, uma desordem autofágica e retroprodutiva. É vendido e mercadejado, na aparência, como um progresso inaudito. O leitmotif mais apregoado consiste na transplantação e enxerto das leis naturais triunfantes para o mecanismo socio-político, segundo esse farol específico com que a Santa Natureza  algures brindou e mimou o homem: a razão.

Hoje já sabemos que o sistema auro-regulado culminou no mercado em auto-regulação. Já vimos no que deu a tolerância e o humanismo após 1789. Mas na época houve também alguém que passou a factura integral das novas "ideias" - que, aliás, tanto quanto a factura proforma, apresentou o espelho às suas últimas,  materiais e fatais consequências. E o curioso é que esse espelho foi ficando cada vez mais nítido e actual. Mesmo hoje...

« - Estes sistemas são espantosos, padre - retorqui a Clément; -conduzem a gostos cruéis, a gostos horríveis.
    - E que importa? - respondeu o bárbaro. - Acaso somos donos dos nossos gostos? Não devemos ceder diante da ordem que recebemos da Natureza como a cabeça orgulhosa do roble se inclina perante a tempestade que o fustiga? Se a Natureza se sentisse ofendida por estes gostos não os inspiraria; é impossível que recebamos dela um sentimento feito para a ofender, e nesta extrema certeza podemos entregar-nos às nossas paixões sejam de que espécie e violência forem, convencidos de que todos os inconvenientes resultantes do choque produzido nos ignorantes não são mais do que desígnios da Natureza, dos quais somos os involuntários veículos.(...)
Que importa essa ignomínia a quem não tem princípios? Quando se fez tudo o que havia a fazer, quando a honra não é mais do que uma palavra sem sentido, quando a reputação é uma coisa indiferente, a religião uma quimera e a morte um aniquilamento, não será a mesma coisa morrer-se no cadafalso ou na cama? Há duas espécies de malvados neste mundo, Thérèse: os que, por serem muito ricos ou se encontrarem muito bem colocados dentro da sociedade, estão ao abrigo deste fim trágico e aqueles que não o evitarão se forem detidos. O indivíduo que faça parte deste último grupo não tem senão um desejo se for inteligente: ser rico de qualquer maneira e infiltrar-se na sociedade que inicialmente o perseguiu. Se tiver êxito, consegue o que ambicionava e deve sentir-se contente; se falhar e for preso, de que poderá lamentar-se se nada tinha a perder? Se as leis não atingem o poderoso e se são ignoradas pelo desgraçado, que conclusão há a tirar? Que são nulas, minha querida Thérèse.»

               - Marquês de Sade, in  "Justine" 

Como eloquentemente assinala Alexandre Koyré, acerca da destruição do cosmos e da centrifugação da Terra e do homem, «no final desta evolução encontramos o mundo mudo e terrífico do "libertino ateu", o mundo desprovido de sentido da filosofia científica moderna. No final encontramos o nihilismo e o desespero.»

7 comentários:

Vivendi disse...

E
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A ler e a reler no mínimo umas 10x.

muja disse...

Ora, pois.

E, na sua opinião, eles puseram em prática a teoria, ou foram escarafunchar teoria para justificar a prática?

Isto é, viajaram por essas linhas abaixo até descambarem na guilhotina, ou foram apanhando destroços pela beira das linhas para a ataviarem de paleio?

Anónimo disse...

Maravilha, de deixar em pulgas para os próximos episódios.
Achei muito apropriada a referência a Sade, até porque poucas pessoas terão deixado uma marca tão grande no mundo pós-1789: totalitarismos, liberalismos, socialismos, fascismos, anarquismos, psicanálise...
Se o nosso mundo está cheio das impressões digitais de um tipo com um CV daqueles (assassino, violador, burlão, génio literário, doente mental, etc.), o que dirá isso de nós?

Miguel D

dragão disse...

Muja,

não foi vossência que pediu filosofia? Vai tirar a barriga de misérias. :O)))

A resposta a isso virá nos próximos capítulos.

Em todo o caso, importa, como lei geral, referir o seguinte:

O que os filósofos, semi-filósofos e pseudo-filósofos debitam podem até ser coisas um tanto ou quanto idiotas, nos piores casos. Mas não é daí que vem o pior mal ao mundo. Ou seja, não é tanto o que os pensadores escrevem, mas as leituras que deles se extraem. Quase sempre parciais e mutiladas, senão mesmo mal traduzidas. Isto é, por muito idiotas que possam ser os filósofos, nessa matéria nunca chegam aos calcanhares daqueles que deles distorcem e refinam idiotice criminosa. O panfletarismo é antigo e insidioso.
No caso concreto em análise, houve um caldo cultural e propagandístico que agitou e causou a deflagração. Mas, a partir daí, basicamente, só um "pensador" pode traduzir o que se passou: Sade. É inenarrável.

dragão disse...

Miguel,

um génio literário, de facto. Na forma, um dos maiores escritores da língua francesa. O resto que refere também é significativo tal qual aponta. Embora até eu, que sou, desde os meus bancos na faculdade, um especialista no "divino marquês", fique, não raras vezes, abismado sobre onde é que passa a fronteira entre o humor negro e a tara pessoal.

Todavia, na sua vertente genial, Sade emparceira com Swift. Ninguém como eles tratou da distopia como ela merece. Infelizmente, as de Sade tornaram-se pesadelos bem reais, concretos e sempre mais actualizados. E isso, de facto, diz tudo sobre o nosso tempo.

E note quando ainda há bem pouco tempo eu referi os doidos da ala furiosa do manicómio, donos duma realidade absolutamente privada, como a perfeição última dos liberais, estava a ser honesto e sincero. Não era ironia. A loucura de Sade, personificação do libertino, também representa isso.

Anónimo disse...

Caro Draco,

Outra coisa que me intriga nestas questões é como política e a articulação racional de interesses costuma ser precedida por uma obra de arte ou um movimento artístico.
Dir-se-ia que, antes de qualquer posição política ter hipóteses de vingar ou se chocar frontalmente com o poder, teve que haver um momento prévio em que se plantou uma semente nas cabeças das pessoas, seja poesia, ficção, pintura, etc..
Como os poetas alemães no final do sec 18 (Hölderlin, Novalis etc.) anunciaram tanto do que veio a seguir.

Miguel D

passante disse...

> a articulação racional de interesses costuma ser precedida por uma obra de arte ou um movimento artístico.

Bingo. Existiria folhetim tide sem romantismo, ou romantismo sem folhetim tide? (explicitando, alguém teria reparado que havia romantismo sem os folhetins?)

Na minha extremamente modesta* opinião, a venda de sabão é a força motora da idade moderna. Uma actividade pouco espiritual.

Como os gregos se lavavam com azeite e areia, não admira que houvesse aquilo do platonismo - nunca me cheirou bem, confesso.

(* "e com muita razão para isso", como disse um facínora espirituoso dum rival)