segunda-feira, julho 16, 2012

O Trono e a Cruz (r)





Isto vem a propósito duma questão acerca do maquiavelismo,  decorrente do último postal. Trata das tais consequências adentro da própria cultura católica e recapitula, tanto quanto reifica, uma das essências capitãs  deste navio fantasma. 
E é como se segue ...

Pois comigo é simples: qualquer rei que aceite uma Constituição é um tipo que aceita ser funcionário superior dum harém. Reis eunucos serão bons para povos castrados; reis postiços serão bons para gente de fancaria e para profissionais de decoração, cabeleireiras, merceeiros e outros pensadores de eleição, mas não para homens inteiros. Um rei que aceite uma Constituição, eu não aceito como rei, ponto final parágrafo.
Atrelar um rei a uma Constituição não é coisa de seres racionais, mas duma associação recreativa ou grupo excursionista de cavalgaduras. Dito ainda mais sinceramente: rei que aceite constituição é-me insuportável, a não ser que eu próprio seja esse rei. Como aceitar por soberano um cidadão meu semelhante, um súbdito duma receita lavrada qual catálogo duma teocracia de vermes? Intragável essa soberania promíscua, mais digna de albergue espanhol que de terra portuguesa, em que todos são soberanos do soberano, mas nenhum é soberano de si. Palco sórdido e velhaco onde se canta a liberdade, mas onde até o rei se vê reduzido à vassalagem. Da Constituição, imagine-se. Da democracia da treta e dos seus parasitas sufragados.
Um rei não me representa (senão teríamos, em vez duma teia de representantes múltiplos, uma trama de representante único): um rei simboliza-me, congrega-me, confere-me sentido enquanto povo. Serve de elo vivo entre o passado e o futuro, entre o sagrado e o profano, entre o que nunca muda e o que muda todos os dias, entre os mortos e os vivos, os antepassados e os vindouros. O rei é, não faz de conta. É um algo acima e para além da sua pessoa e de todas as nossas pessoas. A limite, pois, o rei não é derrubável ou cancelável por qualquer surto efervescente de turbamultas mais ou menos orquestradas ou noctiluzes. Não, o que é, de facto, é traível: a começar pela pessoa dele próprio, se aceitar, vilmente, a canga ou a mutilação. Se, em vez de príncipe de homens livres, se degradar ao Primeiro dos escravos da puta da Lei. Rex é regra e a regra está acima, antes e para lá da lei. Ou não está. E depois pode ser atraiçoado por todas essas pessoas que não apenas se proclamam republicanas, como, e se calhar pior um pouco, se apregoam "monárquicas", isto é, adeptas do pseudo-regime. Ora, a república que é ela senão o estado e consequência última da deterioração da monarquia? Aliás, entre nós, que tem sido a república senão um proliferar de pseudo-reizinhos ao colo dum feudalismo de Estado?
E note-se que o drama não começou na vaca da Revolução Burguesa, digo Francesa. Aí, na cloaca obrigatória, desaguou ele. Na verdade, tudo principiou, o trambolhão completo, quando um belo dia um rei, tentado por um qualquer espelho maligno, descortinou: "o Estado sou Eu". Foi o mesmo que dizer: "Eu sou a minha própria negação." Faltou lá um Aristóteles qualquer que lhe ensinasse, do alto daquela autoridade que só a neve dos cabelos brancos confere: "não, infeliz, isso é precisamente o que tu não és, e devias esmagar o quanto antes, como réptil peçonhento que é! Porque se em vez de o pisares, te transformares nele, trazendo-o para dentro de ti, virá o dia em que será ele a dizer: "O Rei sou Eu!"
Infelizmente, esse dia veio e é o dia que, como sombras errantes num Hades mais lúgubre que o original, atravessamos. Esta era em que o superior se submete ao inferior, em que se talha a regra à medida da lei, em que as estrelas do pântano se fazem aclamar como estrelas do céu. E, sobretudo, em que a "ausência de regime" passa por regime e a multiplicidade desarvorada de esquemas faz as vezes de sistema.

Ora, alguns idólatras da formalidade e do verbo fátuo, acreditam que se o réptil adoptar coroa a coisa fica menos sórdida e rastejante. É, assim, a coroa reduzida ao adereço material e o adereço promovido a fontanário de virtudes. Pior, é a Coroa legia nostra.
Todavia, não me parece assim tão difícil de perceber, mesmo para mentes frívolas e salta-pocinhas, a razão simples por que uma monarquia deteriorada e deteriorável não é melhor que a vulgar das repúblicas... É que a diferença entre ambas não reside já na essência mas no tempo. Diferenciam-se apenas enquanto fase, não enquanto processo. Querer regressar à monarquia deteriorada porque esta representa uma fase menos putrefacta do processo, mais que uma impossibilidade conjuntural (essa, contudo, ainda se resolveria), é duma desmioleira tremenda: é voltar de Cila para Caribdis e sentar-se lá à espera que Cila volte, fatalmente. Bem sei que o paradigma de Sísifo preside a esta Época do Absurdo, mas mesmo assim...
Na verdade, não nos compete restaurar monarquias, como não nos está autorizado arreá-las. É poder que não temos. Chamamos revoluções a meras bebedeiras colectivas, mai-las auto-flagelações, vomitórios e folclores decorrentes. O que temos é que restaurar a coluna vertebral, readquirir a postura vertical, a lucidez e a bipedia. Feito isso, a monarquia é o prémio natural, o resultado subsequente. Vem por simpatia. Ou seja, não é a monarquia que temos que restaurar, somos nós próprios. Os reis sempre foram o corolário natural de haver homens, mas jamais foram necessidade ou recompensa de escravos.
Por outro lado, o trono reflecte a cruz. Na monarquia, a de Cristo-rex; na pseudo-monarquia, do naufrágio assistido, a do papelinho anónimo para glória do papelão constituinte. É por isso que na primeira se simboliza o triunfo sobre a urna sepulcral, como na segunda se atesta o triunfo da urna eleitoral. A exacta diferença que medeia entre a vida e a morte lenta dum povo.
Resumindo e concluindo, ou há rei a sério ou sou anarquista. Ora, se há algo que não sou é anarquista. Logo, o rei está lá, onde sempre esteve e há-de estar. Não está sequer ausente: está encoberto. Pelo fumo, pelo ruído e pela névoa suja duma multidão de escravos, de pusilânimes, de sabujos do instante a ferver e, sim, de traidores. Traidores do seu rei, ou seja, das suas raízes, da sua terra, dos seus deuses, antepassados e nobres costumes. Traidores à sua própria natureza. Raquíticos mentais. Escaganifobéticos!
É nesse nevoeiro e contra esse nevoeiro que escrevo. A fogo.

6 comentários:

Manuel Marques Pinto de Rezende disse...

Digno de um José Agostinho de Macedo.
Bravo!

muja disse...

O pior é que os gajos têm água que se farta... eheheh

Gostei de ler.

Fernanda Viegas disse...

Soberbo, este seu texto Dragão! Conseguiu a simbiose perfeita entre o Homem e o Sagrado.Sem nutrir qualquer simpatia pela figura do Rei,ao lê-lo, senti inexplicavelmente um regresso às origens.

Anónimo disse...

Soberania, é esta a essência que une o rei e o anarca, de modo que um se transmuta no outro. Soberania.

Xico disse...

Vocelência passou-se! Apre, que por momentos julguei ter por companheiro o condestável.
Dragão amigo, estou contigo. (não há mal que uma águia plane na companhia de um dragão, pois não?)

Duarte Meira disse...

Dragão:

"ou há rei a sério ou sou anarquista"...

... Falsa disjunção, se "ser anarquista" é ser rei a sério de si próprio, na velha escola de Antístenes e de Diógenes de Sinope.

Mas há outra escola, em que se professa precisamente o que diz o meu caro:

« o rei está lá, onde sempre esteve e há-de estar».

Permita-me apenas uma pequenina mudança maiúscula:

« o Rei está onde está e é o que é, onde sempre esteve e há-de estar».