«Os nobres romanos tiveram um agudo sentido da autoridade e da majestade do seu Império, mas era-lhes desconhecido aquilo que nós chamamos a noção do Estado, ou do serviço público. Distinguiam mal funções públicas e dignidade privada, finanças públicas e bolsa pessoal.
(...)
- Paul Veyne, in História da Vida Privada
E no meio deste estarrecedor espelho, ó caros confrades e otários, onde é que situais a tão propalada ética repúblicana, a tão cantada soberania popular ou a não menos diáfona igualdade dos cidadãos perante a lei, que vos alumiam o paleio e canonizam a submissão?...
* - Nota minha.
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O funcionário íntegro é uma excentricidade [eu chamar-lhe-ia fantasia para entreter papalvos *] do Ocidente moderno; em Roma, cada superior pilha os seus subordinados, tal como se fazia nos impérios chinês ou turco, onde tudo fuincionava por subornos, e que não deixaram por isso de dar mostra de uma capacidade multissecular de dominação.O exército romano não deixava de ser eficaz por via dos curiosos costumes que, ao mesmo tempo, possuía: "tradicionalmente, os soldados pagavam um suborno aos oficiais para isenção de serviço, ainda que um quarto ou quase dos efectivos de cada regimento se entretivesse com frivolidades ou se pavoneasse nos aquartelamentos: contanto que o oficial tenha recebido o pagamento... Os soldados arranjavam o dinheiro necessário através de roubo ou do banditismo, ou então fazendo trabalhos de escravo. Se um soldado era um pouco mais rico, o oficial enchia-o de faxinas e de pancada até ele lhe comprar a dispensa"; pensamos estar a ler não Tácito, mas as Nouvelles asiatiques de Gobineau. Qualquer função pública era um racket onde os encarregados faziam pagar os subordinados e onde todos juntos exploravam os administrados: assim aconteceu no tempo da grandeza de Roma e no do seu declínio.
A menor função pública (militia), a de escrivão ou de contínuo, era vendida pelo antigo titular ao candidato à sucessão, já que se tratava de uma espécie de renda representada pelas "luvas"; para além disso, o recém-chegado devia dar uma gratificação substancial (sportula) ao seu chefe de repartição. No Baixo Império, os mais altos dignitários,designados pelo imperador, deveriam entregar uma... ao Tesouro imperial; (...)
E como qualquer nomeação assentava em recomendações de "patronos" que gozavam dos favores da corte, as recomendações (suffragia) vendiam-se ou, pelo menos, pagavam-se; se o patrono não mantivesse a sua palavra, a vítima não hesitava em apresentar queixa perante os tribunais. Os corretores (proxenetae) especializavam-se nas transacções de recomendações e de clientelas (amicitiae), mas a sua profissão estava publicamente desacreditada.(...)
Aos subornos acrescentavam-se as extorsões praticadas pelos altos mandarins. (...)
Cícero, depois de um ano de governo de uma província, ganhou apenas o equivalente a mil milhões dos nossos cêntimos e pôde daí tirar glória: era muito pouco. (...)
Não se servia o Estado, servia-se no Estado, ao mesmo tempo em serviço próprio; esta concepção pode ser censurável, mas, psicologicamente, um corsário não é um oficial de marinha de alma corrupta.
A questão não é ser íntegro, mas ter tacto, à maneira de um comerciante que não deve deixar a clientela perceber que vende só em seu próprio interesse. Ora, enquanto os governantes se servem servindo o imperador, as populações oprimidas desejam poder acreditar que esses senhores paternais as oprimem para o seu próprio bem. "Sê obediente e o governador amar-te-á", escreve S.Paulo. É preciso portanto enriquecer sem impedir, por atitudes demasiado explícitas, a possibilidade dessa crença; o interesse dos funcionários nos lucros do poder não deve desmentir o desinteresse do poder em si próprio De tempos a tempos um processo público dava um exemplo e a cabeça de um governador caía, ou pelo menos a sua carreira: esse desastrado tinha manifestado sentimentos cinicamente interesseiros; tinha sido descoberta uma carta onde ele escrevia à sua amante: "Que alegria! Que alegria! regresso para ti livre das minhas dívidas, depois de ter posto à venda metade dos meus administrados".»
- Paul Veyne, in História da Vida Privada
E no meio deste estarrecedor espelho, ó caros confrades e otários, onde é que situais a tão propalada ética repúblicana, a tão cantada soberania popular ou a não menos diáfona igualdade dos cidadãos perante a lei, que vos alumiam o paleio e canonizam a submissão?...
Este trecho, então - "Qualquer função pública era um racket onde os encarregados faziam pagar os subordinados e onde todos juntos exploravam os administrados" - é uma perfeita antecipação do vosso tão augusto "estado social". Basta actualizar "administrados" por "contribuintes".
* - Nota minha.
1 comentário:
Nada há a saber, excepto que a natureza humana é assim, pelos menos há um milhão de anos. Os bons políticos têm de saber História (que se repete – vira o disco e toca o mesmo) e de saber "do que é que o seu povo gasta".
Abraço!
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