«Suponhamos que um devedor não pretende devolver-nos o dinheiro que lhe emprestámos; ou suponhamos ainda que, como fortuna total possuímos uma pequena quinta, à qual estamos muito ligados porque os nossos antepassados aí viveram ou porque a região é muito agradável. Um vizinho poderoso cobiça o que possuímos; à cabeça dos seus escravbos armados invade-a, mata os nossos escravos que tentavam defender-nos, mói-nos de pancada, expulsa-nos e apodera-se da nossa quinta como se lhe pertencesse. Que fazer? Um moderno diria: apresentar queixa perante o juiz (litis denuntiatio), obter justiça e conseguir que nos seja restituída a nossa propriedade pela autoridade pública (manu militari). Sim, as coisas passar-se-ão mais ou menos assim no termo da Antiguidade, quando os governadores de província tiverem feito triunfar, em todas as coisas, o seu ideal de coerção pública. Mas na Itália dos dois ou três primeiros séculos da nossa era as coisas passavam-se de forma diferente.
A agressão do nosso poderoso vizinho é um delito puramente civil e não depende de coerção penal; será a nós, queixosos, que compete assegurar a comparência do nosso adversário perante a justiça; para isso será necessário apoderarmo-nos desse indivíduo no meio dos seus homens de mão, arrastá-lo e acorrentá-lo na nossa prisão privada até ao dia do julgamento. Se o não conseguirmos e não pudermos obrigá-lo a comparecer à força pernate o juiz o processo jamais poderá ser estabelecido (litis contestatio). Conseguimo-lo e, graças à intervenção de um poderoso que nos aceitou como cliente, obtivemos justiça: a sentença pronunciou que tínhamos o direito do nosso lado; não nos resta mais do que executarmos nós próprios esta sentença, se tivermos meios para tanto. Consistirá isso, aparentemente, em conquistarmos através de grandes lutas a quinta dos nossos antepassados? De modo algum. Por uma extravagância inexplicável, um juiz não podia pura e simplesmente condenar um réu a restituir o que roubou. Abandonando a nossa quinta à sua sorte, dar-nos-á autorização para nos apoderarmos de todos os bens e domínios do nosso adversário; vendê-los-emos em leilão, guardaremos uma quantia em dinheiro igual ao valor pelo qual o juiz avaliou a nossa quinta (aestimatio) e daremos o excedente ao nosso adversário.»
- Paul Veyne, in "História da Vida Privada"
Como vêem, não é de hoje nem de agora: a tendência geral do direito é dar para o torto.
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