«Chegámos ao barco com grande antecedência... Ficámos nos lugarzinhos piores, mesmo por cima da roda da proa... Viamos todo o horizonte admiravelmente... Eu é que ia ser o primeiro a avistar a costa estrangeira... O tempo não estava mau, mas mesmo assim mal nos afastámos um pouco, mal perdemos os faróis de vista, ei-la que começou a excitação... Começa o balancé, a navegação a valer... A minha mãe foi-se logo encafuar no reduto dos cintos de salvação. Foi ela a primeira a vomitar pelo convés fora e na terceira classe.... Ficou tudo vazio num instante...
«Toma conta do menino, Auguste!» teve ela ainda tempo de ganir... Não havia coisa que mais o irritasse...E vai daí então outras pessoas começaram a fazer esforços inauditos... por sobre a borda, sobre a amurada... Acompanhando o balanço, ou em contra-mão, vomitava-se de qualquer maneira, ao calhas... Havia uma única retrete, ao canto da coxia... Já estava pejada de quatro vomíticos, derreados, dobrados em dois... O mar ia engrossando cada vez mais... A cada vaga que se formava, toma lá mais um bónus... E quando ela se desfazia, doze, pelo menos, bem mais opulentos, bem mais compactos... O véu dela, da minha mãe, foi uma rajada que lho arrancou, todo encharcado... foi chapar-se na boca de outra senhora que estava na ponta... a refrear o estômago... Foi-se-lhe a penitência! Doces... salada... marengo... café com leite... toda a paparoca... tudo pela boca fora... para a linha do horizonte!
De joelhos, nas tábuas do chão, a minha mãe esforça-se e sorri, sublime, a baba a escorrer...- Estás a ver - nota ela, em contra-balanço... horrível... - Estás a ver também a ti Ferdinand também a ti te ficou no estômago o atum!... - Repetimos o esforço juntos. Buah!... e outra vez Buah!... Enganou-se! São os crepes!... Acho que seria capaz de dar com as batatas fritas... com um bocado mais de afinco... Dando volta à tripalhada, extirpando-a, aqui no convés... Tento... debato-me... ganho forças... Uma cerração tramada investe contra a balustrada de proa, bate, esguicha, torna a cair, varre a entreponte... A espuma arrasta, molha, agita, remexe toda a porcaria pelo meio da gente... Toca a lavar... Mais outra vez... A cada mergulho lá se vai a alma... recobramo-la à vinda, num refluxo de mucos e cheiros... Ainda nos escorrem pelo nariz, salgados. É demais!... Um passageiro implora perdão... Berra aos quatro ventos que está vazio!... teima!... Mesmo assim ainda lhe vem à boca uma framboesa!... Encara-a com terror... Até entorta os olhos... Não tem realmente mais nadinha lá dentro!... bem gostaria de vomitar os dois olhos... faz esforços nesse sentido... Escora-se na mastreação... Tenta fazê-los sair dos buracos... A mamã essa deixa-se cair sobre a balustrada... Revomita à tripa-forra... Veio-lhe uma cenoura... um naco de gordura... e o rabo inteiro de um salmonete...
Lá em cima, ao pé do capitão, a gente da primeira, e da segunda, cascateava tudo em cima de nós... Cada onda que varre os duches são refeições inteiras que se apanha... é-se fustigado pelos detritos, pelas carnes em fiapos... Que vão até lá acima às rajadas... a guarnecer o cordame... O mar à volta muge, é a batalha das espumas... O papá com o seu boné de orelhas apadrinha os nossos desfalecimentos... embandeira em arco. A sorte dele! tem um estômago de marinheiro!... Dá-nos bons conselhos, quer-nos ver ainda mais prostrados... a arrastarmo-nos ainda mais... Uma passageira vem de escantilhão... esparrama-se em cima da mamã... usa-a como calço para melhor lançar... Também um cãozito se manifesta, de tão doente que está mete-se cheio de cagaço pelas saias dentro... rebola-se, mostra-nos a barriga... Dos cagatórios vem uma gritaria horrível... São as quatro pessoas que lá estão fechadas dentro que já não conseguem vomitar mais, ne,m mijar... nem cagar sequer... Esforçam-se sobre o buraco da retrete... Imploram que as assassinem... Mas o traste do barco vá de se empinar ainda mais sempre teso, torna a mergulhar... a enfiar-se no abismo... no verde escuro... Todo ele baloiça outra vez... Chocalha-nos, o infecto, o nosso bandulho vazio...»
Céline, "Morte a crédito"
Hoje é 27 de Maio. E a todos os 27 de Maio, neste batel danado, celebra-se Céline. Céline inteiro, completo, sem mutilações. Mais logo volto. Com as "Bagatelas". Esperem só...
4 comentários:
nice blog
E venham as bagatelas e o massacre
":O)
Que texto mais chato e sensaborão. Não admira que ninguém tenho ouvido falar deste tal de Celine.
Celine é só um dos mais brilhantes escritores do séc. XX. A minha primeira reacção seria chamar ignorante ao senhor acima. Mas depois lembrei-me. Celine por ser maldito, e maldito por não se enquadrar naquela ideia do intelectual de esquerdalha (as pegas que o homem teve com o Satre) não é muito conhecido no nosso país.
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