quarta-feira, abril 05, 2006

O Bode da Questão


Tornando à vaca fria, ou melhor, ao bode, já que tanto insistem...
«Tanto que Brízida Vaz se embarcou, veo um Judeu, com um bode às costas; e, chegando ao batel dos danados, diz:
JUDEU
Que vai cá? Hou marinheiro!
DIABO
Oh! que má-hora vieste!...
JUDEU
Cuj'é esta barca que preste?
DIABO
Esta barca é do barqueiro.
JUDEU
Passai-me por meu dinheiro.
DIABO
E o bode há cá de vir?
JUDEU
Pois também o bode há-de vir.
DIABO
Que escusado passageiro!
JUDEU
Sem bode, como irei lá?
DIABO
Nem eu nom passo cabrões.
JUDEU
Eis aqui quatro tostões
e mais se vos pagará.
Por vida do Semifará
que me passeis o cabrão!
Querês mais outro tostão?
DIABO
Nem tu nom hás-de vir cá.
JUDEU
Porque nom irá o judeu
onde vai Brísida Vaz?
Ao senhor meirinho apraz?
Senhor meirinho, irei eu?
DIABO
E o fidalgo, quem lhe deu...
JUDEU
O mando, dizês, do batel?
Corregedor, coronel,
castigai este sandeu!
Azará, pedra miúda,
lodo, chanto, fogo, lenha,
caganeira que te venha!
Má corrença que te acuda!
Par el Deu, que te sacuda
coa beca nos focinhos!
Fazes burla dos meirinhos?
Dize, filho da cornuda!
PARVO
Furtaste a chiba cabrão?
Parecês-me vós a mim
gafanhoto d'Almeirim
chacinado em um seirão.
DIABO
Judeu, lá te passarão,
porque vão mais despejados.
PARVO
E ele mijou nos finados
n'ergueja de São Gião!
E comia a carne da panela
no dia de Nosso Senhor!
E aperta o salvador,
e mija na caravela!
DIABO
Sus, sus! Demos à vela!
Vós, Judeu, irês à toa,
que sois mui ruim pessoa.
Levai o cabrão na trela! »

- Gil Vicente, "Auto da Barca do Inferno"

Uma pequena nota: ao desafortunado judeu, nem o Diabo o quer. Para espanto da comarca, snoba dele. Por fim, numa concessão que, mais do que o imperativo profissional, traduz o nível da repugnância que tal criatura suscita à moral da época, lá condescende em levá-lo "à toa", quer dizer, fora da barca, a reboque duma corda. Tal qual o judeu levará o cabrão. O paralelismo, de resto, é deveras óbvio: o judeu está para o batel como o cabrão está para o judeu.
Convenhamos que este meu curso rápido de anti-semitismo até tem autores interessantes. Convenhamos, igualmente, que estas obras deviam ser proscritas do mercado.Com Gil Vicente, os sinais não mentem, abeiramo-nos de um "paleontonazismo" inquietante. Só de imaginar as crianças que lêem estas blasfémias e heresias nas escolas!...Que germe hediondo não se instalará nelas...

Não deixa de soar a uma certa mofa aquela expressão "civilização judaico-cristã".

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