« Prometeu - Sim, libertei os homens do terror permanente da Morte.
Corifeu - E que extraordinário remédio descobriste para esse mal?
Prometeu - Insuflei-os com esperanças cegas!»
- Ésquilo, "Prometeu Agrilhoado" (tradução minha).
As religiões interessam-me essencialmente enquanto mitologias. Despidas do folclore da crença. Todas elas. É nesse esqueleto que adquirem a sua dignidade e é nessa dignidade que merecem o meu respeito.
Portanto, quanto eu me debruço sobre o mito que as sustenta é escusado virem reclamar-me sobre a crença que, eventualmente, vos sustenta a vós. Não estou aqui a colocar minimamente em causa as crenças seja de quem for - a crença é assunto do foro exclusivo de quem acredita; como o traje é matéria de gosto e vontade de quem o veste, nele investe e com ele se reveste.
Falemos então de Jesus. Da sua morte, mais propriamente.
É o Jesus-Deus que me interessa, o Jesus mito.Confrontamo-nos com uma figura fascinante, muito semelhante a um Prometeu, por exemplo. Há ali um excesso sobre-humano, titânico de filantropia -entenda-se: de amor a esses seres miseráveis, infames, mesquinhos, pusilânimes, "filhos da dor e do acaso" que são os homens. Ora, Jesus, o mito, é um Deus que desce à forma humana e vem ser irmão do rebotalho do mundo. Nisso, contudo, não se distingue de outros deuses noutras mitologias; a sua singularidade é outra - é que não desce apenas à forma: desce rambém à carne. É ao fundo do abismo, ao âmago da treva, da matéria prometida a esterco que ele mergulha. E é com quem lá mora, com quem lá jaz, cativo, amnésico, perdido, que ele se irmana. Dir-se-ia um Deus que vem descobrir a sua humanidade e descobrir-se aos homens, mostrando a marca divina que há neles. O local onde esta teodiceia decorre fica entre duas "Ítacas": o coração de Deus que se compadece -e bate em Jesus- e o coração dos homens -onde Jesus vem exumar o coração de Deus.
Jesus é o contrário do demagogo: não diz façam, faz; não instiga apenas, não manipula, não parasita; pelo contrário, alimenta, cura, perdoa, acolhe. Muito mais que a mera receita, dá o exemplo. E mais ainda que o mapa para um qualquer tesouro, ensina a caminhar, caminhando. Não diz "vão", diz "venham comigo". Se tivessemos que resumir todo este legado aos homens numa palavra, ela seria: coragem. A coragem como exercício de um coração intrinsecamente divino; e a coragem, a limite, para enfrentar sem medo o Calvário, ou seja, o horror, a crueldade e a injustiça que parecem reinar no mundo. Que é preciso afrontar para viver. Aí, sobretudo, a coragem de esquecer-se de si, não só pelos outros, mas também pelo Todo, por algo que subjaz e é eterno. Que esteve no Princípio e estará no Fim. De onde tudo parte e onde tudo retorna.
Enquanto homem, este Deus-Jesus encarna o herói trágico, torna-se protagonista duma tragédia. Ora o herói trágico, ao contrário do "herói moderno", não se caracteriza por um excesso de egoísmo, de protagonismo onanista e de êxito pessoal/material. Jesus não acaba rico, aclamado, invejado e sabujado por hordas de gentalha interesseira e venal. Ao invés, enquanto herói trágico, Jesus comete um excesso de altruísmo, sacrifica-se pelos outros e sucumbe às mãos do Destino, cuspido, flagelado e crucificado por aqueles que tentou curar.
Tal qual Prometeu, Jesus sabe de antemão onde o seu excesso de amor o conduzirá. Pregados, no rochedo gelado ou na cruz, ambos pagarão. Ambos sabem que há um Destino -um sentido, uma razão de Ser - acima do fortuito, da babel e do caos - que importa cumprir. Não se nasce impunemente.
Só que Prometeu permanece divino, imortal nas suas penas. Jesus vai mais longe. Se Prometeu, por essência, está imune à morte, Jesus sabe que no fundo do abismo está esse cálice amargo. Se é essa beberagem que define os homens, como ser homem sem experimentá-la?
Notamos que o próprio Deus estremece diante deste ordálio final, mas culminante. É o fecho da abóbada. A chave do enigma. Sem ela tudo seria em vão. Falta experimentar a verdadeira essência do ser humano - falta, a Deus, ser Homem até ao fim, até à morte.
-"Porque me abandonáste?" - Clama Cristo, ao expirar, ao esvair-se do sopro divino que um dia animou o barro primordial.
Este Deus absolutamente humano, tragicamente humano, terror e piedade última, experimenta o desespero. Morre na cruz como um verdadeiro homem e, também, como só um Deus seria capaz de morrer: numa ilimitada compaixão - agora, no instante final e por um instante, também por si próprio. Faltava, ao Deus, descobrir o Homem que havia em si. Foi só diante da morte que, finalmente, descobriu essa solidão inexpiável de que é feito o indivíduo.
De nós, pobres coitados, que mais há a dizer? Alguma vez iremos descobrir a marca divina que existe, esquecida e soterrada, em nós?...
Pregámo-Lo na cruz, há dois milénios atrás. Nunca mais deixámos de pregá-lo. Para que Ele não nos abandone, não nos deixe aqui sozinhos. Temos medo da escuridão.
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