terça-feira, novembro 20, 2012

A Odisseia da Demagogia



Falemos agora de demagogia. Actualmente, a palavra tem uma cotação extremamente negativa. Taxar um adversário de demagogo" é desqualificá-lo perante a "academia" (entendendo-se aqui "academia"como o círculo de fazedores profissionais da opinião publicada). Os dicionários também não são meigos. O de sinónimos, por exemplo, nem vai de modas e a demagogia justapõe anarquia. Dum modo geral, a demagogia, conforme nos dias de hoje é arremessada, subentende "facilitismo", "embuste" ou"bajulação do povo".
Todavia, na origem, que é a mesma de democracia, ou seja, na grécia antiga, demagogia significa "condução do povo"; tal qual democracia corresponde a "poder ou decisão" do mesmo sujeito. Demagogos famosos foram Péricles, o seu rival Tucídides, e Demóstenes, entre outros. A descrição da fórmula de governo de Péricles por Tucídides, segundo Plutarco, é sugestiva: "uma espécie de aristocracia, à qual se dava o nome de governo democrático, mas que, de facto, era uma verdadeira monarquia na qual só o primeiro dos cidadãos exercia a autoridade". É mais que evidente,  mesmo para o leitor mais distraído, que qualquer semelhança disto com os nossos actuais primeiros-ministros não é pura coincidência: estamos de facto perante pseudo-monarquiazinhas a prazo.
Ora, os atenienses, sobretodas as paixões, estimavam a oratória (cuja ciência, a retórica, já que falamos nisto, anda tão mal vista nos dias de hoje quanto a demagogiia; não raras vezes, circulam mesmo geminadas). Daí a seu gosto colectiva pelos tribunais e pelo teatro, locais, por excelência, do rhetwr - o orador público, o homem de estado, o esgrimista da eloquência. Antes da sua capacidade comprovada de administrador dos negócios da polis, a Péricles, foi a sua eloquência que lhe permitiu conquistar a primazia política e as prerrogativas do demagogo. Claro que a eloquência sem posterior, prévia ou acompanhante solércia prática não bastava. Diz o mesmo Plutarco que de modo a restringir o poder  do Areópago, Péricles terá conquistado os favores do povo "distribuindo dinheiro aos cidadãos pobres para assistirem aos espectáculos e aos tribunais, fazendo-lhes muitas outras concessões à custa do tesouro público". É evidente que também nada disto é estranho aos dias de hoje. Pelas categorias actuais, Péricles teria sido mesmo, neste particular, uma espécie de demagogo proto-socialista. Mas quem nos dera que todos os nossos demagogos eleitos, juntos e por atado, chegassem aos calcanhares de Péricles.
Em todo o caso, tudo isto para apenas expor como mesmo naquele tempo a demagogia não consistia própriamente numa virtude angélica. O que não havia era a sonsice, a hipocrisia e (como adiante veremos) a manhosice retórica que há hoje. Os vícios já existiam, salvas as devidas proporções - ao acto de distribuição de dinheiro do tesouro público pelos cidadãos chama Plutarco de "corrupção da multidão";. Platão e Aristóteles perdurarão pelos tempos em denúncia desta perversão oclocrática da democracia, ou seja, desta oportunidade de manipulação das multidões como um dos perigos inerentes ao governo democrático ( e donde o próprio Platão extrairá até o famoso aforismo: "A tirania é filha da democracia" -, mas a demagogia não era propriamente um kit descartável conforme a conveniência, que se usa e abusa, durante a época eleitoral, como trampolim desenfreado e, uma vez no poder, como tabu hermético às negociatas de estado, labéu inibidor à critica externa e, em geral, estratagema 32 para todos os efeitos. Quer dizer, Péricles foi sempre um demagogo. Antes do Poder e durante o seu exercício. Era ele o condutor do demos e nem por sombra, ou chicana, abdicar dessa responsabilidade, dessa fama e honra. Tal qual Demóstenes, que,  depois dele, personificará o demagogo em combate pela independência e dignidade de Atenas contra Filipe da Macedónia. Mais que vícios e virtudes, há, assim, uma dignidade superior e simbólica no demagogo antigo: ele é o porta-estandarte da polis, sendo que a bandeira maior desta é a palavra. Por isso ele é o porta-palavra, o primeiro e o mais proeminente nas fileiras da língua grega e, por inerência, da Civilização (esta, em contraposição à barbárie - por essência, tudo o que não pertence à Hélade, isto é, tudo o que não enfileira sob o estandarte da língua grega). Tanto que Filipe receava mais a palavra de Demóstenes do que o exército ateniense própriamente dito - afinal, é a palavra que acende a alma de um povo e é a alma deste que o transporta ou não à superação na batalha. Ou à resistência contra o invasor. É a palavra que conduz. Que congrega, Que inflama e encoraja.
Ora, a nossa sórdida actualidade rasteja nos antípodas disto. A eloquência do demagogo, além de sórdida, raquítica e invariavelmente de aluguer, obedece a épocas de abertura e fecho, como a caça. Em período eleitoral, vale toda a demagogia possível e imaginária. Os candidatos ostentam-se e proclamam-se como os ecos vivos, os pimpolhos dilectos, os enfermeiros de serviço, os condutores pressurosos, encartados e diplomados da multidão, do demos em apuros. Ei-los que prometem, assumem, contratam, juram, afagam, bajulam, adivinham, radiografam, anestesiam, profetizam e lambuzam. Mas logo que trepam ao poder, à assembleia, ao cargo, eis que renegam, esquecem, sacodem, ignoram, desprezam e repudiam para longe de si, para imensamente abaixo de si, essa turba suja, acéfala e desqualificada que é o povo, a plebe doravante destituída, com severidade, de todas as sumptuosas dignidades do eleitorado. Pouco confiança nessa turba!  Vade retro, porca res! Completamente incapaz para decisões importantes acerca do seu destino. A demagogia serve apenas de rampa de saltos; uma vez no pseudo-troninho a prazo, os eleitos não são mais demagogos: são semideuses. Nenhuma responsabilidade os liga mais aos governados, nenhuma solidariedade, nenhuma comunidade, nenhuma honra especial e, sobretudo, nenhuma espécie de simpatia. Agora, não lhes compete conduzí-los, mas mandá-los (às urtigas, especialmente). Representá-los? Nem a brincar!... Sobrevoá-los, isso sim. Sobrevoá-los, descartá-los, desconhecê-los  e, quando muito, borrifá-los a partir dos céus olímpicos, com raios fiscais e decretos trovejantes. 
Referendo sobre a entrada para a CEE? Demagogia!... Referendo sobre a assumpção do Euro e abandono do escudo? Demagogia barata!... Referendo sobre os tratados da União europeia? Demagogia imunda!... Referendo para o pedido de resgate externo, vulgo Troika? Aqui d'el rei, demagogia!...
Toda a clarividência, excelência e quintessência legítima do povo termina na hora da contagem dos votos. No minuto seguinte, olhai o milagre, mirai a relampejante magia: toda ela se transfere, inefavel, para os demagogos eleitos. Por troca, e descompensação, estes, ao assumirem a soberania semidivina, abandonam às massas incautas toda sua precária humanidade e, de brinde junto com ela, toda a sua prévia e excitante demagogia proomotora. De tal ordem, que qualquer expectativa  de condução da coisa pública fica confinada aos governados, enquanto nenhuma perspectiva, vontade efectiva ou responsabilidade disso cabe os governantes. Pelo que qualquer reclamação daquele pressuposto perante estes é descartada através de que fórmula universal? Demagogia, evidentemente. Por exemplo, actualmente, o povo português reclamar pela sua soberania, independência ou futuro extra-hades é demagogia. Como antes reclamar contra os fenómenos , decisões e estratégias que conduziram situação actual, também era, calculem, demagogia.
Notem pois o requinte: Péricles foi demagogo toda a vida. Com erros e glórias, foi sempre ele o indubitável condutor do seu povo. Estes nossos demagogos de ocasião e campanha, só conduzem o povo até às urnas. Depois, a condução do povo (a demagogia) fica toda com o povo - ele que se conduza sozinho e assuma as responsabilidades e sobretudo os défices  até às vésperas do próximo sufrágio. Os eleitos, esses, mal ascendem, passam de imediato à autogogia... Que é como quem diz, à condução, estrita e exclusiva, deles próprios através do néctar e da ambrósia que constitui o dinheiro dos outros e a propriedade de todos. Autogogia, aliás, tanto mais urgente quanto menos vitalícia. Precários possidónimos, enfim.
Quanto à eloquência, nestes nossos vis e apagados tempos, quem pode surpreender-se ainda que descompareça das palavras e da própria língua, e transpareça cada vez mais, embora perversamente, nos actos? Eloquentes, mesmo, só já a miséria, a vacuidade e a traição!...

1 comentário:

lusitânea disse...

Para os da Autogogia "povo" Português é coisa que se encaixa algures entre o pólo Norte e o pólo Sul, de preferência mais próximo deste que de mansinho vem substituindo o indígena convidado a "emigrar" enquanto as portas estão escancaradas ao outro muito mais manso ainda...e com subsídio da segurança social...