Rebentou a peixeirada na Atlântico. Num tique-tanque daquela dimensão, com tal volume de águas, não é de espantar. Mas isso, digo já, pouco me interessa.
Bem mais interessantes, sempre vos digo, foram alguns efeitos colaterais. Aproveito um desses, do sempre inefável João Miranda (que já estava decerto com saudades minhas), para dilucidar acerca dum apetrecho que não há cão nem gato que, a cada quarto de hora, não sacuda e alguidareje aqui na blogolândia: o dito cujo, e abominável, ad hominem.
Legisla, então, o João (e memorizemos):«Os Ataques ad-hominem são
1. falta de educação
2. denotam falta de argumentos
3. denotam incapacidade para sequer perceber o que é um debate de ideias.
4. Revelam um total desconhecimento de uma boa teoria da informação e do conhecimento.»
Ora bem, começo por declarar que não sei a que arte marcial o Miranda se refere quando soletra "ataques ad-hominem". Das que conheço, e ainda são uma quantas, não faz parte. Nunca por lá a vi, tal técnica, golpe ou kata. Não é kung-fu, não é Jiu-jitsu, não é Karate, não é judo, nem é muay-thai. Nem muesli. Também não é boxe. Será wrestling? Será xadrez - uma variante sinistra anti-siciliana ou um truque rococó do gambito de dama? Será luta na lama? Será na cama? Sutra? Bruta? Gruta? Será luta livre, digo liberal? Será esgrima? Será play-station? Será playback? Ou play-adiante? Será tourada? Será lambata? Street-fight? Street-racing? Break-dance? Luta de galos? De frangos? De quê? Ocorre-me agora: será Vale-tudo? E há só para hominem, ou também há para senhorem? E para gajem?... Será murro, pontapé, cabeçada?... Raid, razia, cerco, carga tresloucada?...
Enfim, por mais voltas e manivelas a que submeta a cachimónia não vislumbro a que ciência trauliteirante pertencerá esse temível - bem como vil, reles, ordinário e badalhoco - "ataque ad hominem". Será uma fórmula erudita, muito erudita, para descrever o tão célebre quão famigerado coice às partes baixas, vulgo tomates? O Engenheiro Ildefonso Caguinchas já me está para aqui a buzinar aos ouvidos: "O que o gajo quer dizer é que 'há-dominó', pá!", mas o engenheiro, como todos sabemos, não é de confiança.
Declaro-me vencido. Não sei que arte marcial, jogo ou desporto colectivo será.
O que conheço, muito vagamente (e sem ser no sentido bíblico, naturalmente) é o "argumentum ad hominem", também conhecido por "ex concessis". Schopenhauer, no seu tratado erístico, até o denomina por Estratagema 16 e descreve-o da seguinte maneira: «se o oponente faz uma afirmação, deve procurar saber-se se ela não estará de algum modo, nem que seja aparentemente, em contradição com algo que ele disse ou admitiu anteriormente, ou com os princípios de uma escola ou seita que ele haja aprovado e elogiado, ou com os actos dos adeptos de tal seita, quer sejam sinceros ou não, ou com os próprios actos e pretensões dele. Por exemplo, caso ele defenda o suicídio, deve bradar-se logo: "Por que não se enforca?" Se ele sustentar por exemplo que Berlim é um local inóspito, diz-se-lhe: "por que é que não parte na primeira carruagem?"»
Mas decerto não é a isto que o João Miranda se pretende referir. Pela descrição que faz, sobretudo no ênfase primogénito à "falta de educação" (a subentender quiçá o ataque pessoal), só me ocorre aquele que Schopenhauer, no mesmo tratado, cataloga como "Último estratagema". É o chamado argumentum ad personae, descrito assim: "quando percebemos que o oponente é superior e que não iremos ganhar, tornamo-nos pessoais, insultuosos, grosseiros. Tornar a questão pessoal consiste em passar do tema da disputa (uma vez que se perdeu a partida) para o próprio oponente, atacando a sua pessoa de todas as maneiras possíveis: poderia chamar-lhe argumentum ad personae para o distinguir do argumentum ad hominem (...)"
Em todo o caso, vou conceder que, por limitações do google ou da wikipédia, se integre o argumentum ad personae num sub-departamento do argumentum ad hominem. Mesmo assim, ao recapitularmos o diagnóstico joão-mirandês, ver-nos-emos constrangidos às seguintes objecções:
1. Não é forçoso que o argumentum ad hominem constitua falta de educação; apenas no caso de resvalar para o argumentum ad personae é que isso eventualmente acontece (e amiúde ocorre, como foi agora o caso);
2.Não denota "falta de argumentos" porque ele próprio é um tipo de argumento. O que denota é uma falácia, caso aquele que o emite seja grosseiro bastante para não saber mascará-lo e aquele que o recebe seja subtil o suficiente para dele se aperceber. Se for o contrário, subtil o emissor e grosseiro o receptor, o resultado, geralmente, é este último remeter-se à rosnadela desconfiada ou ao silêncio confuso; se ambos forem grosseiros, o mais provável é aquilo degenerar em peixeirada ou ciber-rixa. Por outro lado, o facto de ser falacioso não constitui entrave ou objecção especial ao utilizador, seja ele grosseiro ou subtil: não consta que o caro João Miranda seja muito escrupuloso no recurso a falácias (o facto de serem por regra subtis, justiça lhe seja feita, apenas abona da sua solércia, não tanto da sua honestidade intelectual);
3. Também não é imperioso que denote "incapacidade para perceber sequer o que é um debate de ideias", porque as pessoas não são anjos armados de razão pura, nem, tão pouco, máquinas calculadoras de silogismos, andaimadas em "critérios de verdade" ortopédicos à maneira dos fedelhos com arames na dentuça. Não são conhecidos, até à data, ambientes ultra-pasteurizados para o debate. Os "argumentos" são, por isso mesmo e invariavelmente, das academias às tabernas, manifestações mais de vontades, birras, intuições, manias, interesses, modas e preconceitos do que de "razões purinhas e lavadinhas" que, desde o senhor Immanuel Kant, nenhum pensador com os alqueires bem medidos resgata ao reino cristalizado da fantasia (onde pertence, entre outros, na ala dos perigosos, o delírio neo-positivista); e com certeza, vosselência, um ultra-liberal encartado, não me vai requerer uma explicação para esta preponderância do "interesse" e do "egoísmo" sobre as acções dos indivíduos (a não ser que me diga que um debate é uma inacção...);
4. Finalmente, se o "desconhecimento de uma boa teoria da informação e do conhecimento" impede o debate de ideias, não se percebe que raio andou a humanidade a debater, por exemplo, no tempo de Platão ou Aristóteles. Calculo mesmo que Platão nem terá tido tempo para debatê-las, assoberbado que estava a concebê-las. Na vintena de séculos seguinte também não houve debate, porque, entre outras coisas, ad hominem é um termo inglês, pelo que não tinham como arremessá-lo uns aos outros.
Falta apenas acrescentar que o argumentum ad hominem, além de não ser necessariamente uma falta de educação para com o alvejado, pode também nem ser sequer uma falácia.
Exemplifico:
Se eu proclamar que "o João Miranda é um asno" estou a usar um claro argumentum ad personae que, além de falacioso, é grosseiro. Profiro, sem dúvida, um insulto ao João. Tem lá as suas manhas , mas não evidencia, pelo menos dum modo escandalosamente acima da média nacional, ser burro nenhum. Mas se eu disser: "o CAA é um bácoro" não estou, de modo algum, a usar um argumento ad personae: estou, isso sim, a esgrimir um argumentum ad pecum, isto é, estou a ser injusto e grosseiro para com o suíno. Do mesmo modo, se eu afirmar que a Câncio é uma turbo-sopeira frenética estou, definitivamente, a usar dum argumentum ad personae, mas não estou a ser falacioso nem injurioso, porque, simplesmente, estou a dizer a verdade. (Não a verdade absoluta, bem entendido, mas a verdade possível de extrair duma observação científica, com quanta certeza, rigor e minúcia o conhecimento humano actual disponibiliza ao entomólogo).
Também tenho direito às minhas bizarrias e hoje deu-me para ser pedagógico.
25 comentários:
AHAHAHAHAHAH
Eu bem esperei por este post
":O))))
Ó Zazzie, que é feito do Timshel?
Será que a Opus Dei deixou de pagar a conta da luz e os tipos da EDP cortaram-na e agora o Timshel não tem energia p'ra computar???
Desde 24 do mês passado que não dá uma, de Cultura, claro!
Há muito que não ria tanto. Ainda bem que ninguém ouviu.
E destaco esta passagem, digna do melhor que Eça produziu, em simbiose irónico-sarcástica:
"Se for o contrário, subtil o emissor e grosseiro o receptor, o resultado, geralmente, é este último remeter-se à rosnadela desconfiada ou ao silêncio confuso"
obrigado pela preocupação mas a culpa não é da Obra ou da electricidade
são só ondas que me dão
é um mecanismo curioso: primeiro, os ovos dos posts vão-se acumulando mas não consigo arranjar tempo para os chocar
depois, os ovos vão apodrecendo e mesmo quando tenho tempo para chocar alguns que ainda sobrevivem, apodera-se de mim uma variante da depressão pós-natal, que neste caso é uma depressão pré-postinhos, uma espécie de preguiça abortista, assassina de embriões de posts
"Tem lá as suas manhas, mas não evidencia, pelo menos de forma escandalosamente superior à média nacional, ser burro nenhum"
a mim parece-me bastante subtil :D
Está tudo muito bem. Os pobres merecem a esmola. Mas podia esmolar sem sujar o latim.
Mas se eu disser: "o CAA é um bácoro" não estou, de modo algum, a usar um argumento ad personam: estou, isso sim, a esgrimir um argumentum ad pecus (ou pecum, se preferir, por via da rima), isto é, estou a ser injusto e grosseiro para com o suíno. Do mesmo modo, se eu afirmar que a Câncio é uma turbo-sopeira frenética estou, definitivamente, a usar dum argumentum ad personam, mas não estou a ser falacioso nem injurioso, porque, simplesmente, estou a dizer a verdade. (Não a verdade absoluta, bem entendido, mas a verdade possível de extrair duma observação científica, com quanta certeza, rigor e minúcia o conhecimento humano actual disponibiliza ao entomólogo).
Como ainda devo ter uma costela de um anónimo espectador do circo romano é esta parte que me fez aquecer o sangue...
Isto não passa nada. Vai um gajo atrás dos tradutores e leva logo com a lupa em cima!... :O)
Lool!
O dragão não o entendeu, o homem estava-se a queixar de dores de barriga pá.
"ataques abd-hominem"
Lool!
O dragão não o entendeu, o homem estava-se a queixar de dores de barriga pá.
"ataques abd-hominem"
Estimado Timshel, estimo que não haja problemas de maior.
Cumprimentos.
Dragao, tu es o maior idiota da blogosfera!
Repara: isto nao e' "ataque ad-dragonimen"! E' apenas uma constatacao, baseada no impecavel rigor cientifico que caracteriza habitualmente as minhas intervencoes blogosfericas, de que nesta blogolandia ninguem melhor do que tu consegue burilar os textos para dar um baile dos antigos aos utentes dos manicomios blogosfericos. Agora, vou li ali ao lado, contar este teu postal ao pessoal do lado, que assim ja' temos pretexto para umas saudaveis gargalhadas. Divertidissimo post! :O))
idiota porque tens as melhores ideias, e' claro. (nao me entendas mal, pa')
o MP_S é um científico alegre
":O)))
o Pateta tambem :O))
ohohohoh
Depois das emoções fortes da leitura do post do ano sobre pecuarii greges ainda descobri uma irmã de língua inglesa e uma parceira do circo romano.
Ainda bem que o Senhor te deu o dom da fala flamante, Dracone.
a maninha era eu...
":O?
FANTÁSTICO!
Confesso que não venho cá com muita assiduidade. Hoje, percebi a qualificação que Timshel dá à capacidade de escrever do Dragão.
O parágrafo 3 é... sem palavras, tenho inveja de não saber escrever assim.
O caro CCZ não conceda qualquer crédito às calúnias que esse tal Timshel, hostiofágo junkie, arauteia a meu respeito. Quando não são injúrias, são vitupérios. O seu (dele, Timshel, diabos o levem) arsenal retórico resume-se a um único argumento: ad dracum.
E se não vem cá muitas vezes, ó CCZ, garanto-lhe que também não perde grande coisa.
:O)
Nunca tinha deixado aqui um comentário, mas hoje não resisto.
A sua capacidade de misturar e alinhar palavras é absolutamente notável. Genial, mesmo.
Parabéns!
"E se não vem cá muitas vezes, ó CCZ, garanto-lhe que também não perde grande coisa."
Olhe que não, olhe que não.
Isto é do Dragão no seu melhor. Este postal é absolutamente delicioso.
Ó Sr. Dragão, desta feita Vexa. passou-se; excedeu-se, por assim dizer.
Este que Vexa. destilou das meninges, tenho a honra de dizer-lhe, é um dos melhores textos que tenho lido nos últimos anos - e olhe que eu fiz a quarta classe antiga, não sou desse com licenciatura em sociologia ou psicologia...
Ainda assim, gostava de ter o seu domínio da filosofia. Vê-se bem que sob o seu imperial domínio, ela, a filosofia, não recalcitra nem estrebucha, obedece, servil e pronta, como puta bem domesticada que está.
P.S.: Se algum dia lhe incorrer na ira, mendigo desde já a mercê de não ser assim fustigado. Apre! Pobre João...
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