domingo, dezembro 24, 2006

Struthio Camelus Natalicius - Um Conto Negro de Natal

Nesse Natal decidiu fazer uma surpresa à família. A ideia surgiu-lhe repentina, extravagante, mas irresistível. A megalomania, de resto, não escolhe ocasiões: é quando menos se espera. Esse Natal é que ia ser, E foi.
Em vez do tradicional e corriqueiro peru, vingou-se e foi mais longe, à África quase:levou para casa um avestruz. Grande, adulto, altas patas, olhar maroto e brincalhão. Pantófago. Simpático até: muito mais interessante que os perus, com aquele estúpidomonco por cima do bico. Maisinteressante e maior, mais gordo. Um raio o partisse se não ia dar um banquete de arromba!...
Entrou com o bico pela trela e todoa a família se veio logo admirarmuito. A mulher recriminou-o, claro. Que era um exagero, não cabia sequer no forno, a eternidade que não levaria para assar, enfim, asmulheres... A sogra, solidária e, como todas as sogras, sempre pronta para desfeitas, corroborou com a filha: se ainda fosse um javali, vá que não vá -um javali é que era chique, nobre, delicioso -, agora um avestruz, era um bicho dos infernos, da casa do diabo! também asprimas impugnavam a ave corredora, votandonum ganso, era milenar a tradição do ganso,com molho à inglesa, então, era de comer e chorar por mais!... E até o avô veio à liça, argumentando cabrito, perante a oposição da irmã e do cunhadoobsidiados em borrego, e a defesa intransigente do peru pela restante família, com o padrinho na liderança. Apenas o tio Honoriobardo, reformado damarinha, não litigava,ponderando em voz alta, erudito e viajado, para quem o ouvisso: "Antes do mais, convém apurar ao certo se se trata efectivamente dum avestruz; é que pode dar-se o caso de ser um nandu, uma ema ou, caso ainda mais inquietante, um casuar!..." E manobrava de volta da alimária, assestando os óculos e estudando-lhe a fisisonomia.
Porém,como quase todos os governos, embora criticado pela esmagadora maioria, o avestruz viera para ficar. E fosse avestruz, nandu, ema ou casuar, era ele ou nada!, o avestruz ou a guerra civil!, garantiu o digno chefe de família, cioso das suas prerrogativas ditatoriais. Diante de tamanha firmeza, os quase-amotinados recuaram. Dispersaram murmurejantes; cada grupo de interesse, a repensar o seu lobi. E daí a pouco já os miúdos galopavam na varanda, encavalitados na ave, aspergidos pelos resmungos aleivosos da avó materna que,na sua sua qualidade de sogra do mentor do bicho,profetizava desgraças e hecatombes ante tão abrupta e cafrina rotura das santas tradições. O tio Honoriobardo, esse, acompanhava também, atentamente, as evoluções, de mão no queixo e fazendo "Hummm..."
Com o jantar chegou a canja e a unanimidade resignada quanto ao avestruz. Tinha uma belas coxas, anuíram finalmente todos, com as reservas óbvias da sogra, que as profetizava duras e salgadas, enxameadas de nervos e tendões intragáveis. Bem, mas ia ser o avestruz, o avestruz sim senhor, o avestruz todo, no dia de Natal! "Assadinho no forno, como tu bem sabes!" - Aconselhou,gulosos, à mulher.
Ao que ela negor de imediato: era doido, no forno como? Onde é que aquele monstro, aquele dinossauro com penas cabia no forno? Nem metade, nem um terço, nem nada! No forno é que não ia ser, podia ficar certo disso!...
-"Faz-se um churrasco! - propunha o cunhado e uma das primas. - NO churrasco é que é bom!"
- "Nada disso! - velava a irmã e outra prima,instigadas pela sogra. - Coze-se num caldeirão!; é a única forma: corta-se aos bocados, coze-se num caldeirão e depois grelha-se!"
-"Isso é que era bom! - berrava o avô. - Num caldeirão, nunca! fazem-se filetes, é o que vos digo! Filetes ou febras, ora essa! OH, que saudades que eu tenho das febras!... Ou então presuntos, chouriços,pastéis,enchidos à moda antiga,ides ver comoé bom!..." E, sonhador, inveterado, aproveitou para, sorrateiramente, apalpar as coxas que tinha à mão, as da viúva do primo Ildefonso por sinal, sentada incautamente a seu lado.
Ainda ruborizada, perplexa, a digna e bem fornida senhora, sem saber bem que atitude tomar, já o audaz decano, tomando por anu~encia deleitada a fugaz hesitação, digitava pela saia acima à procura dum tesouro.
As crianças, entretanto, queriam mousse e o resto da família achava que, fosse como fosse, devia acompanhar-se com batatas.
-"A murro! A murro!" - Berrava de novo o avô, abandonando momentaneamente a cada vez mais ruborizada viúva para vir esmurrar a mesa, em reforço indubitável da sua tese.
-"calma, avô!...Acalme-se, então?... - refreava-o uma das primas. - A murro, o bicho fica todo pisado."
-"As batatas, sua estúpida: refiro-me às batatas, chiça!...não é ao avestruz,porra!...Filetes de avestruz com batatas a murro, garanto-vos que é de estalo!" - barafustava o ancião, como olho direito a varar a assembleia e o esquerdp a mirar de soslaio os peitos arfantes da viúva.
Mas a sogra contrapunha arroz de manteiga, batatas nunca,e a madrinha recomendava omolete e molho de cabidela, com salada a acompanhar. A esposa do malogrado Ildefonso, essa,matutava espetadas e o tio Honoriobardo, dado a minúcias, relembrava:
-"Convém não descurar a taxinomia exacta; estabelecer espécie e variante sem margem para dúvidas. Só então se poderá estabelecer uma culinária proveitosa!"
Chegava o bacalhau, mas não chegava o consenso. De pé na cadeira, o avô arengava os seus ideais, ameaçando com greve de fome caso as seculares reivindicações não fossem atendidas, quando um restolhar na sala os alertou. Foram ver. Era o avestruz, debicando o candelabro após ter devastado a árvore de Natal.
Novas recriminações: que se fosse peru não devastava a árvore nem mutilava o candelabro, carpia a mulher. Era o que dava o desrespeito pelas tradições, e outras tragédias viriam, agoirava a sogra. Os restantes atarefavam-se de volta do presépio, à procura do Menino Jesus que desaparecera, comentando o padrinho que talvez o divino bebé se tivesse farto do mau hálito da vaca e da burra, enquanto as primas suspeitavam do rei mago preto, o cunhado olhava de esguelha dois pastores, e a sogra urrava mais que todos, acusando o avestruz de antropofagia sacra e de canibalismo hediondo na pessoa do símbolo do Natal!
Fingiu que não ouvia e foi trancá-lo na marquise. Ao avestruz, claro; já que à sogra não podia: era Natal.
As buscas, entretanto, não davam em nada. Por ingestão, fuga, rapto ou sabe-se lá que mais -o tio Honoriobardo não punha mesmo de parte a hipótese duma qualquer rede de pedofilia alienígena-, o facto é que o Menino Jesus levara sumiço. Ora, isso constituía um sério entrave à normal prossecução dos festejos da quadra. Havia pois que substitui-lo. Não é possível celebrar um aniversário sem o aniversariante.
-"Ó mãe, pomos o Toy chorão!" - propôs, excitada, uma das gémeas.
-"Não, pomos é antes o Action-baby!..." - contrapôs o primo Zézinho.
-"O Bebé-barbie, o Bebé-barbie!..." - pomoviam os restantes.
É claro que os adultos não demoraram a tomar partido. Dum lado, as primas e o cunhado, embevecidos com o Toy Chorão, a pilhas, que berrava desalmadamente e mijava fraldas a eito; do outro, o padrinho e o avô, convertidos aos dotes viris do Action-Baby, fruto dum caso amoroso entre o Action-man e a Wonder-Woman, também conhecido por Bebé-Bond, ou Bebé-Rambo, equipado com múltiplos estojos de combate e aventura; e, por fim, num terceiro baluarte, a mulher, a irmã e a madrinha, fanatizadas no filho da Barbie com o Ken, mai-las suas múltiplas toiletes e cenários.
-" Tem que ser o Bebé-Rambo, gaita! E armado com a metrelhadora G-3 e o colete anti-bala, para se defender como deve ser -quando não ainda o levam para o crucificarem outra vez!" - Clamava, não sem uma certa lógica, o avô.
-"Pois!...- Apoiava, entusiasmado, o padrinho. - E com o lança-misséis portátil, à cabeceira, não vá o diabo tecê-las!"
A ala feminina, partidária juramentada do Bebé-barbie, persignava-se e retaliava pela voz da sogra:
-"Uns bons diabos sois vós, seus sandeus! Se isso é presépio que se faça!..."
-"Valha-nos Deus! - Secundou a filha da sogra e, por tal sina, mulher dele. - Então Jesus, esse anjinho que simboliza a paz no mundo, vai estar assim nas palhinhas como se estivesse numa trincheira, armado para o massacre e fardado para a matança?!...Perdoai-lhes senhor, que não sabem o que dizem!..."
-"Irra, mas que beatas imbecis! - Ribombou o avô. -Mas nas palhinhas estava ele deitado, que nem um anjinho, e vejam o que lhe aconteceu: levaram-no para a cruz, foi o que foi! Levaram-no para o pregarem que nem uma tabuleta, chiça! Mentira?...Vá, digam!..."
-"Mas, ó avô...-Tentou conciliar o cunhado e, em simultâneo, fazer campanha pelo seu preferido. - Não acha que pôr um menino Jesus de fralda camuflada e metrelhadora em riste é um pouco excessivo?... Isto é um presépio, não é a Guiné ou o Vietname!... Olhe que ternura que é o Toy Chorão, parece mesmo um menino Jesus!..."
Porém, nesse momento, cumprindo um programa regular e pré-estabelecido, o glorificado boneco cuspiu a chucha e desatou num berreiro assanhado e controverso (as primas iniciaram de pronto um aceso debate, sustentando uma que era fome, a outra que eram gases), bem como num mictório abundante, que não poupou sobremaneira o melífluo apologeta e marido da irmã. Romperam, o avô e o padrinho, em gargalhadas tonitruantes, no que a sogra aproveitou para manobrar de esguelha e atacar de flanco:
-"Calai-vos e às vossas bandalheiras, gente blasfema, antes que um raio desça dos céus e vos refunda a todos! Tirai-vos, que já aqui vai o nosso menino, com o vestidinho de crisma e o fatinho de catequese!..."
-"Sim, -completou a filha - e no carrinho de ir ao supermercado!..."
Era verdade; o Bebé-barbie resplandecia, prontinho nos mais dignos e precoces fatos de ver a Deus, ao volante da viatura bendita.
-"Ó mãe, e não esqueças o telemóvel do bebé, com GPS e Bip sinalizador, anti-sequestro!..." Alertou uma das netas (da sogra).
-"E olha a consola on-line, com turbo scan 3D!..." - Acudiu uma outra, um ano mais nova.
Mas o avô, arreigado aos seus caprichos, desenfreado na caturrice, é que não estava pelos ajustes. Apercebendo-se da ameaça, do abrolhar da procissão, foi lesto em deslizar das gargalhadas para os urros. Munindo-se de tons melodramáticos e parábolas de empréstimo, atalhou de supetão:
-"Mas ó súcia ígnara e sem fé, até quando terei que vos aturar?! Dum lado, é um mentecapto que avança com um mija-berços; do outro, uma megera que empurra um chupa-terços!... Irra, que é dose! Mas estará escrito em algum evangelho que Jesus, mesmo criancinha, chuchava, mijava e bramia, ou desfilava na passerelle e telefonava ao Pai?! Hem?...Estou a falar chinês?... Ó Honoriobardo, tu que andas lá sempre de roda dos livros e das bibliotecas, elucida lá estas galinholas desmioladas, estas ratas de sacristia, se não é verdade isto que eu digo!..."
O tio Honoriobardo, reformado da marinha e erudito autodidata desde então, seguia atentamente a polémica com o lóbulo esquerdo, mantendo, todavia, o direito adstrito à questão mais antiga - de saber se o avestruz podia ser denominado avestruz, se ema, nandu ou casuar. Opinou pois à mais recente, sem deixar de ruminar a primogénita.
-"Bem... efectivamente, se o Jesus recém-nascido padecesse dessa incontinência proverbial a todo e qualquer bacorinho humano, bem certo seria que, em vez de ouro, incenso e mirra, os reis magos teriam comparecido com fraldas descartáveis!..."
-"Fraldas descartáveis, nem mais!...-Irrompeu o avô, reforçando o absurdo. - Fraldas descartáveis, arrastadeiras e escovilhões, estão a ver? Estão a ver a Nossa Senhora sujeita a cacas nauseabundas e repuchos sórdidos, ãh? estão bem a ver?!..."
Suspirando, dando corda à paciência, o tio Honoriobardo lá continuou...
-"...quanto a berrar, como faz o comum dos fedelhos recém-chegados a este Vale de Lágrimas (e por isso se chama ele assim), também não consta nada em auto, o que de resto a ter-se passado ocasionaria a que o malvado Herodes lhe tivesse deitado a unha, coisa que, como é sabido, não aconteceu..."
-"Ah-Ah!...O Herodes, o cabrão do Herodes! Ora aí está: repimpem-se! (que é como quem dizia:"tomem, embrulhem!") - Atravessou-se de novo o decano, para sublinhar o apontamento.
-"Ó avô, quem era o cabrão do Herodes?" - Não se conteve, ingénuo e curioso, um dos míudos.
-"Um pedófilo!...Um desses..." - Rosnou, o velho, e escarrou com desprezo na carpete, como que a purgar-se de tamanha e tão desprezível obscenidade.
-Ah..." - fez o minorcas, esclarecido; -"Francamente, papá!...", fez, por sua vez, a nora deste e mãe do anterior, correndo em busca do balde e esfregona.
-"Tecnicamente, pai, não seria pedófilo, mas pedófobo..." -Aproveitou, o tio Honoriobardo, para corrigir e retomar a palavra.
-"Pedófilo, pedófobo, pedófago, pedagogo, pedregulho, vai tudo dar ao mesmo! Caganitas! São ogres que comem criancinhas, chiça!...Avança, homem, e deixa-te de pintelhices!...Vai direito ao assunto, pôrra!" - Condensou, furiosamente, o ancião.
-"Bem...-prosseguiu, resignado, o tio Honoriobardo -, quanto à hipótese do Menino Jesus se comunicar telefonicamente com Deus Pai é certamente peregrina, mas não se sabe se bem-vinda. Pressuporia a existência dum satélite, de antenas e retransmissores, equipamentos de que não há qualquer notícia ou prova documental. Deus Pai, é sabido, não telefonava: enviava pombos ou anjos estafetas; também não carecia que lhe telefonassem, pois possuía uns ouvidos tão ubíquos e infinitos que não havia alfinete a cair que ele não ouvisse, fará certas conversas e desabafos."
-"Ora aí está! - Aplaudiu o avô, triunfante. -Ouviram bem? Que me dizem a isto, hem?! E agora fala-lhes daquela parte onde Nosso Senhor anuncia que há-de voltar e bem armado!..."
-"Com efeito. -Confirmou o erudito. - Mateus 15-30, se bem me lembro. Voltará com a espada, é garantido."
-"Pois aí tendes, ó ímpios! - Bradou, eufórico, o velhinho. -'Espada', claro está, é força de expressão. Significa arma, equipamento bélico, tira-teimas! A profecia não deixa dúvidas: Jesus há-de voltar, armado até aos dentes, passado dos carretos, para pôr esta canzoada toda a ferro e fogo! Olá se não!... Irra, que há-de ser um braseiro lindo de se ver!..." E, com um brilho sonhador e visionário a iluminar-lhe o rosto, concluiu: "Por isso, diabos me levem, se não é o Bebé-Rambo que merece ir para as palhinhas, com metralhadora e paraquedas, que se Jesus cá descesse agora bem inútil e escassa seria a espada e bem melhor lhe quadraria a bomba H e o lança-chamas! A não ser que me digam que Deus é um unhas-de-fome, um caquético esclerosado, que não quer saber do Filho para nada!..."
Tão fulgurante argumentação não colheu, todavia, o consenso esperado. O tumulto parlamentar reinstalou-se. Clamava a sogra contra o militarismo e a favor do bebé-model; gralhavam as primas contra a artificialidade e a favor do bebé chorão; ameaçava, mais alto que todos, o avô, com raides comando e heliassaltos arrazadores, na figura do Bebé-bélico (assessorado, para mais, pelo padrinho e dois netos que, em jeito de estado-maior e gabinete de crise, lhe rogavam que não esquecesse o desembarque anfíbio e a infantaria motorizada).
-"Tragam-me os bombardeiros!" -Ordenava já o ancião, em vias de perder definitivamente a tramontana e cada vez menos inclinado a democracias.
-"Isso, avô! -Gritou, entusiasmado, um dos pirralhos. -faz como o Bush!"
O desvairado estratega e cabo de guerra natalícia acusou o toque e apressou-se a desfazer equívocos:
-"Qual cabrão de Bush, qual carapuça! Merda dessa é na capela do Júlio de Matos, meu filho. Faço mas é como o Hitler, o Alexandre, o Napoleão!...Esqueçam os bombardeiros: tragam-me antes a falange grega, os panzeres, a artilharia!..."
-"Não se esqueça dos submarinos..." - Segredou-lhe o padrinho.
-"Pois! E os submarinos, carago!..."
Estava-se mesmo a um passo da terceira guerra mundial, quando ele, na sua qualidade de dono-da-casa, filho do futuro tirano, genro da sogra, afilhado do padrinho, primo das primas e outros títulos que tais, lembrou que o bacalhau estava a ficar frio e o gato Pimpão já rondava uma posta do rabo.
-"Levaram o menino Jesus para o crucificarem, e tu falas-me no bacalhau!?...Irra!!" - danou-se ainda mais, o avô.
-"Alguma rede pedófila..." -Murmurou entredentes o tio Honoriobardo - Mafias internacionais, senão mesmo transplanetárias... Rituais sado-masoquistas..."
-"Vá lá, venham prá mesa! - Aconselhou salomónico e apaziguador. - O Menino Jesus foi ao Céu e já volta. Está a testar a vossa fé. Vinde comer e vereis se, por milagre, depois do jantar, ele não aparece... Ora, quando chegar, não vai gostar nada de ver o berço usurpado... Não vai, não!"
O apelo às hostes resultou. Confundidos e envergonhados, la voltaram para o bacalhau com batatas, exceptuando o avô qu,e se não fosse pela viúva, a esta hora ainda lá estava a fortificar o berço e a guarnecer de baluartes e trincheiras os inefáveis estábulos. Todavia, a custo, rdsmungando e barafustando, lá regressou à mesa, aproveitando, à laia de desopilanço, para descarregar no fielamigoa bílis inflamada:
-"Porcaria de bacalhau! Na minha terra come-se polvo!... isto não é ceia nem é nada!... Cheguem-me daí o azeite, que jáengoli a merda doutra espinha!..."
Todos os anos era assim: se lhe davam bacalhau, reclamava polvo; se lhe apresentavam polvo, reivindicava bacalhau. Um porque tinha espinhas, outro porque lhe faltavam dentes.
Não obstante, lá se chegou à sobremesa e, com ela, voltou-se ao avestruz. O avô não desarmava com os filetes, ante o despautério das cunhadas e das primas coligados no mesmo churrasco.Para fazerema vontade ao velhinho, até porque este jábrandia a bengalaem volteios inquietantes, concordaram todos que o acompanhamento seriam batatas, esmurradas, mas quantoaos filetes nem pensar. A maioria estava com o assado na fogueira, ideia fulgurante do padrinho.
-"Pronto, está bem.Mas só se for eu a acender a fogueira! - Reconverteu-se o avô, sempre na vanguarda e estranhamente solícito. -Vocês vão ver como se acende uma fogueira!" E partiu, sem mais delongas nem garfadas, pró quintal, co os fósforos e amiudagem chilreandoà volta, na expectyativa de grandes incêndios, Romas a arder, que naquilo, como em tudo, o vô-vônão sepouparia a excessos. Além disso, ia ele arquitectando com os seus botões, enquanto jesus não voltava com o lança-chamas, avançava João Baptista com um lumaréu.
Foi realmente uma fogueira monumental, bíblica, que até os bombeiros tiveram que vir apagar a garagem.
-"Isto é como em quarente e dois, meninos!, uma fogueira aos bons velhos tempos!... - Inebriava-se o idoso Nero, ante as labaredas que lambiam já, gulosas, a casa do vizinho, o Antunes das petúnias. - Então?! e essa tenra ave, vem ou não vem?!!!"
Entre o clã reunido em conferência, depois do difícil consenso culinário, gerava-se agora controvércia quanto a sobre quem reverteria a honra súbita de esfaquear o avestruz e preparar o espeto. As primas reclamavam dos seus direitos, enquanto,sempre tradicionalistas, iam agitando o garrafão de aguardente com que procederiam aos preliminares; mas a sogra, infléxivel desmancha-prazeres, defendia a tese radical do martelo para o competente aturdimento da ave, ante a firme contestação do cunhado mais a esposa respectiva, os quais,evoluídopse revolucionários,propunham a hipnose, garantindo os resultados.
-"Conta-lhes, conta-lhes!... Contalhes como eu faço lá em casa copm as galinhas!...Infalível!... - Apregoava. - Ora, um avestruz é só uma galinha grande, maior, gigante, não custa nada!"
-"É maluco! Onde é que já se viu? Hipnotizar o bicho...francamente! ia tirar o gosto todo à carne!..." - rebatia a sogra, brandindo o martelo.
-"Olhem lá, mas trazem a alimária, ou não trazem?! daqui a pouco acaba-se o lume e o Antunes ter-se-á sacrificado para nada!" _ Rugia o avô, ládo quintal, em cima das petúnias, no meio do gáudio da criançada, que ria muito das habilidades e caretas desesperadas do vizinho, o Antunes,empoleiradona chaminé, a tentar esquivar-se às chamas da casa ardente. Voltavam os bombeiros, agora com uma grande escada, e o avô, sempre atento e voluntarioso, que a gente antiga é doutra fibra, ponderava já da combustibilidade da moderna e resplandecente viatura dos soldados da paz.
O avestruz, enquanto isso, por artes óbvias de quem comia fechaduras, esgueirava-se da marquise e, avançando no living, curiosos e atrevido, debruçou-se sobre os circuitos eléctricos, com a cabeça dentro do televisor, a debicar transistores, no meio da telenovela.
Correram a enxotá-lo, de vassouras e tachos em riste, mas tarde demais: o avestruzera duma voracidade excelente. Duma assentada, comera os canais todos, com mira técnica e tudo. Novas recriminações...
-"Anda cá ver, anda cá ver o que fez este monstro que trouxeste para casa!!!" - Ouviu a mulher a gritar-lhe.
Poisou o cachimbo e foi à sala.
-"Vê! Vê com os olhos!! - Estrilhou ela, mal o viu entrar. - Estragou a televisão e devorou a telenovela! Não te contentavas com um peru, como toda a gente... Tinh que te dar para a megalomania.Tiveste logoque trazer para casa um antropófago, um cafre, um lambaz!"
Sorriu. Começava a simpatizar deveras com o raio dobicho, de olhar calado e maroto. Chamou-o e ele acorreu, obediente. Atravessaram a cozinha e a discussão que prosseguia - entre as primas, a sogra e o cunhado -, e saíram pró quintal, sem que o avô sequer reparasse, tão entretido andava a acender o carro dos bombeiros, providencialmente absortos no salvamentento do Antunes que hesitava, choroso, em lançar-se de cima do telhado prestes a ruir. Deixou a simpática ave, presa com corrente e cadeado, junto ao cão, que rosnou desconfiado, e voltou pró cachimbo, nas pantufas. Ao menos, no escritório havia paz. Só o tio Honoriobardo, com grande mistério, de lupa em riste, dando-se ares de Sherlock Holmes, desfolhava livros e enciclopédias.
Na sala, a sogra contumaz, depois de exemplificar no cunhado, só já querelava com as primas. Estas, cada vez mais condescendentes, nas propostas e na argumentação, visivelmente sensibilizadas pelo pragmatismo da outra, cediam a olhos vistos. Não tardou mesmo que a tal, por falta de concorrência, se auto-elegesse por unanimidade e aclamação. Armada por conseguinte de martelo e faca, propôs-se, pois, sem mais demoras nem debates, ir dar andamento ao assado. No que, refira-se, quase colidia frontalmente com o avô, a entrar nesse preciso momento, aos gritos, expedindo execrações e vitupérios, a plenos pulmões, furibundo e despeitado, à procura da caçadeira. -"Estes bombeiros são uns perversos, uns maníacos, uns desalmados! Mal vêem uma fogueirinha, um lumezinho de merda, querem logo apagá-lo, os tarados! Mas eu já lhes mostro, eles já vão ver!...Eu não me chame...caralho, já nem me lembro como é que me chamo, tão indignado estou!" E enfiou pela arrecadação,a rebuscar cartuchos e armadilhas de urso. -"Que porcaria de casa esta, que balbúrdia miserável! Sempre que um gajo precisa duma armadilha de urso, nunca a encontra!..." Ouviu-se ainda ribombar.
Reacendia o cachimbo, quando irrompeu o mais pequeno, excitadíssimo:
-"Pai! Pai!...anda ver!...depressa!... É a avó, armada, vai atacar o avestruz!"
O tio Honoriobardo levantou a lupa da encicloédia e murmurou qualquer coisa como: "Avestruz, vamos lá a ver... É certo que não é um nandu, ou um casuar, mas avestruz...hum..." E mergulhou novamente, a pique, nos estudos.
O petiz, esse, não se calava: "Anda, pai! Anda lá ver! A avó quer matar o avestruz! Não deixes, pai..."
A avó do petiz não era senão a sogra dele; por issoa apressou-seair verificar ver dos acontecimentos, que da velha nada de bom seria de esperar. Para mais, não lhe agradava nada a ideia de ser a trombuda megera a pôr cobroà simpática ave. O bicho, só de lhe fitar a carantonha ínvia e mal-intencionada ainda se espavoria, em desautinada brida, de só frearnos antípodas,e lá se ia o banquete de Natal para a Austrália.
rebocado pelo garoto, largou novamente o cachimbo efoi assistirao combate - à chacina, melhor dizendo. De caminho, ajudou o cunhado -ainda zonzo com um visível hematoma na testa - a levantar-se; abriu o armárioonde esperneavam, enclausuradas, as primas com o garrafão de aguardente; e desaguou finalmente no quintal, onde se acotovelava expectante o resto da família, excepção feita ao avô, compreensivelmente, ocupadíssimo a dar uivos de guerra e tiros com a caçadeira nos bombeiros em tumultuosa -mas

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