AVISO: Este postal não é recomendável a pessoas sensíveis. Depois não digam que eu não avisei.
Tive um pesadelo. Daqueles horripilantes, kafkianos. Começava comigo a acordar, uma insólita manhã, transformado num Liberal . Um liberal, ouviram bem. Ao princípio, ainda estremunhado, ao descerrar as pálpebras, era apenas uma sensação bizarra, de um estranho desconforto. Mas, quase de seguida, o desconforto transformou-se em angústia e, ainda não tinham passado cinco minutos, já a angústia degenerava em horror. Apesar do grande trauma que ainda agora me dilacera e me descompassa o sistema cardio-vascular, não resisto à narrativa. Tenho que contar a alguém, partilhar com terceiros esta medonha experiência... Talvez haja por aí um exorcista benemérito.
É verdade que eu, como referi, descerrava as pálpebras. É o que geralmente as pessoas fazem, ao acordar e, nisso, os dragões não diferem das pessoas. O problema é que quanto mais as descerrava –cheguei mesmo a escancará-las com desespero e desmesura – mais negras e densas me surgiam as trevas em redor. Imperscrutáveis, meus amigos. Dir-se-ia que eu flutuava num aquário de trevas. Porque, verdade verdadinha, quanto mais esgargalava as vistas, menos via. "Mau!", pensei para com os meus botões, "queres ver que acordei a meio da noite, devastado por alguma insónia?!..."
Toda a gente sabe que eu, a acordar devastado a meio da noite, prefiro uma Sónia a uma Insónia. Aliás, a insónia, está provado, só se instala na ausência da Sónia. Mas não tergiversemos. Falava-vos daquele estranho breu. Por causa das dúvidas, estiquei o braço na direcção do candeeiro. Experimentei então a curiosa descoberta de já não ter braço. Pelo menos, o direito. "Pôrra!", pensei, "mas que merda vem a ser esta?! Queres ver que alguma brigada de traficantes de órgãos e antropo-acessórios me amputou o braço durante a noite!..." Convenhamos que uma brigada dessas é pior que um acesso de insónia. Diria mais: muito pior. Acho mesmo que foi a partir desta conjectura que a angústia se instalou. Ora, em momentos de angústia eu cultivo o pouco recomendável tique de coçar os tomates. Vocês não sei, mas a mim ajuda-me a coordenar e reorganizar as ideias. À falta da mão direita, desaparecida com o respectivo braço para parte incerta, tive, naturalmente, que recorrer à esquerda para dar andamento à deselegante função. "Tive" é força de expressão, porque na realidade também a esquerda, verifiquei-o com amargura, primava pela ausência. Estou em crer que esta alarmante constatação iniciou o processo de catálise da angústia em horror. Nesta fase, se isso vos interessa, comecei a sentir aflição. Muita. O caso não era para menos, até porque a suspeita da brigada de pilha-órgãos agravava-se: quem rouba os braços também rouba os olhos, rouba os rins e, pior que tudo, supremo furto, até subtrai os testículos!
Nestas alturas vertiginosas, um homem lembra-se sempre de Deus. Um dragão, aí, também não difere muito. "Ó Deus!", carpi, já a ficar deveras preocupado. "Tu não ias permitir uma safadeza dessas, pois não?!" Mas então lembrei-me das safadezas todas que são autorizadas por esse mundo fora e um cabrão dum cepticismo teológico instalou-se-me no pensamento e desatou a dar-me nós na figadeira. Não há nada mais nefasto para a esperança dum indivíduo que o filho da puta dum cepticismo. Minúsculo que seja, basta uma gota para poluir um oceano. Veneno mais contaminante não conheço. Avinagrado, deixei-me de rezas e virei-me para os factos. Quando a oração não funciona, há sempre o anestésico, e nisso a ciência positiva é o que de melhor há para camuflar a coisa e iludir o mamífero, tanto quanto o mitológico. "Vejamos", ponderei, apelando à lógica, "deve haver uma explicação científica para tudo isto." Atrevi-me mesmo a enunciar uma tese: "se calhar, não sinto os braços porque estão dormentes". "Eureka!", quase gritei. Animado por esta perspectiva salvífica, e no fiel cumprimento do método científico, dispus-me a validar quanto antes tão promissor enunciado. Para o efeito, bastava levantar-me, fazer um pouco de exercício, até que a circulação de sangue se normalizasse por todo o organismo, e voltaria a sentir os braços, coçaria os tomates, abriria os estores, a luz do dia devolver-me-ia a visão (tudo por esta ordem prioritária), e eis-me de volta à normalidade. Nada, portanto, mais simples e todo aquele mal entendido se dissiparia.
Mas a minha saga de arrepiantes descobertas ainda não tinha terminado. A que me aguardava no instante seguinte não só confirmava como agravava as anteriores. E atirava com a ciência para o mesmo sítio para onde já despachara a religião. Estais preparados? Já retirastes as criancinhas da sala? Tendes o testamento em dia? Pois aí vai:
Ao querer levantar-me – naquele salto atlético, felino, viril, que me caracteriza e é apanágio e timbre das últimas vinte gerações da minha família (o meu pai, por exemplo, ainda é pior que eu e nem se levanta, irrompe logo vulcanicamente, audaz e sobreactivo), pois, ao ensaiar esse gesto quotidiano mas não obstante sempre glorioso – pude testemunhar, em primeiríssima mão, que não só, a juntar aos braços, me faltavam as pernas, como, por artes daninhas de sabe-se lá que destacamento demoníaco, não restava nenhuma das minhas outrora altivas e mui queridas vértebras. Pude também perceber que, em lugar das costas espadaúdas com que sempre me conhecera, equipava-me agora uma dura e convexa carapaça que, a fazer fé no design, me abeirava perigosamente dum qualquer coleóptero estivador de bosta.
Salvo erro, foi nessa altura, no preciso momento em que me palpitei transformado num repugnante insecto – o liberal, que ultrapassei a angústia, despenquei da aflição e mergulhei de cabeça no fedente e genuíno tanque do horror. Imaginai-vos equipados de élitros, armadura bocal trituradora e metamorfoses completas, e dizei-me cá se não é caso para cagaço completo?!...Mais que completo: absoluto! Não vos recomendo a experiência. Do que um liberal pensa (a segunda parte do meu pesadelo, quando, a seguir ao corpanzil hediondo, me surpreendi também monstrifugado -isto é, ouriçado na forma de antenas sobreciliares- de ideias liberais), guardo-vos para um próximo postal. O Horror, como a melancia, requer tempo de digestão. E se não faço agora um pequeno intervalo, é mais que certo que ainda vos borraríeis todos pelas pernas abaixo. Isto, aqueles que não golfassem as tripas, preferindo o esgoto superior ao anterior.
Por falar nisso... para a segunda parte trazei daqueles saquinhos de avião. É mais que certo que ides precisar. Dão um jeitão do caraças quando a náusea se instala, o chão desata a girar alucinantemente e nós, à falta de Deus, da Nossa Senhora e dos santos todos, vemo-nos sem outra alternativa que gritar ao Gregório. Bem alto!
3 comentários:
Nunca li tanto disparate junto a não ser nas célebres 'teses' que geralmente 'encerram' os congressos do PCP.
As entrelinhas são 'esclarecedoras'.
Nelson Buiça
Um comentário desses, vindo duma inteligência do seu calibre, ó jovem Buiça, enche-me de regozijo.
Só não lhe digo que me estou rigorosamente cagando para o que a sua espécie acha ou deixa de achar, por puro dever de hospitalidade. Afinal de contas, você, apesar da lobotomia intelectiva, sempre é uma visita.
Mas alerto-o para o singelo facto destes meus dias e humores caritativos serem raros.
Um bom natal e próspero ano novo.
OH!
Peço encarecidamente desculpa.
Como me pude esquecer que sofro de 'lobotomia intelectiva'!?
Francamente! Mereço uns bons tabefes, é o que é...
Como me pude esquecer que o ilustríssimo Dragão se está 'cagando' pra os da minha espécie?? Realmente é imperdoável.
Esqueci-me que só o Dragão é inteligente, que só o Dragão é iluminado, só o Dragão pode determinar quem tem e não tem cérebro, só o Dragão escreve bem, só o Dragão tem o monopólio da razão....enfim, como me pude olvidar de tais factos.
Humildemente peço desculpas (mais uma vez e ad nauseum) por ter ousado penetrar na sua 'caverna de sabedoria', autêntico oráculo milagroso da blogosfera portuguesa (quiçá internacional!), perturbando assim as suas sapientíssimas reflexões sobre tudo e todos.
Pecate sin malitia.
Naturalmente não lhe vou responder aos 'insultos'. Não me ofendem minimamente,não tem o Dragão a capacidade para isso....só me ofende quem pode, não qualquer um.
Com os melhores cumprimentos,
Nelson Buiça
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