A literatura –a utopia é um dos seus ramos –, apesar de tudo, é inodora.
Quando exercem as suas contabilidades maravilhosas e espraiam os povos do mundo, as épocas e as civilizações nos seus condóminos de filigrana, em exercícios de perfeição, em manobras assépticas de aprumo, os grandes ficcionistas, do cume da sua fantasia, esquecem um pormenor sórdido mas, todavia, deveras relevante: é que tudo aquilo come, tudo aquilo caga, várias vezes ao dia, todos os dias da vida. Toda aquela salganhada produz montanhas de lixo; escava, alastra, desertifica, flui e reflui como uma praga, como uma mancha de imundície avassaladora, de efervescência corrosiva e gordurosa à digestão do cosmos. E nos intervalos desse come-e-caga, não poupa horas nem minutos que não esporeie uma voraz obsessão de mais comer-e-cagar ou melhor comer-e-cagar, multiplicando-se viviparamente em renovadas réplicas iguais no apetite mas audazes e amestradas para ainda mais e melhor comerem-e-cagarem. E, se possível, vingarem os pais, avós, ou remotos parentes, desforrando-os daquilo que eventualmente, no seu tempo, não conseguiram comer-e-cagar como lhes competia e era devido. Ora, esse défice é sempre exorbitante. Quanto mais famintos e deficitários do bandulho foram esses predecessores, mais glutões e ávidos, famintos, se manifestam os subsequentes, os hodiernos.
E quanto mais e melhor comem, mais e pior cagam, mais se derretem literalmente em estrume, tornando-se verdadeiras máquinas merdofágicas e merdofóricas. Uma vez concentradas no bandulho, não há quem os detenha.
É este come-e-caga que fede. E é esse amontoado putrefacto que, periodicamente, bárbaros tentam varrer, porque só um bárbaro possui estômago para tal coisa. Para tão repugnante função. Debalde. A paisagem respira apenas momentaneamente, vem à tona, como os cetáceos, em captura ansiosa de fôlego para novo mergulho submarino. Em menos de nada, o come-e-caga reinstala-se, o fedor volta. Leveda, fermenta, exorbita, incha, qual torre de babel, ao assalto das estrelas. Por isso escapa à literatura, que, como qualquer um pode constatar, é inodora -e, a maior parte das vezes e dos projectos gerais de felicidade universal ao domicílio, também insípida, delinquescente.
Aquilo, o monturo, ainda por cima, liberta gases, exala fumos tóxicos, nuvens fantasmagóricas. Chame-se-lhe religião, ciência, política, pouco importa. Serve essencialmente para justificar a comezaina, o regabofe. Para, anestesiar a consciência irrisória duma seita de canibais omnívoros, de comensais furiosos.
Um come-e-caga, acrescente-se, que, nos últimos tempos, se albarda e suaviza num perfeito come-e-cala.
2 comentários:
Ok! Desta vez não te safas! Muda lá o acéptico...e não venhas dizer que vem do ácido acético.
E não te zangues com esta obsessão. Uma gralha fica sempre bem num texto tão escorreito.
Uma vez, aliás, a primeira vez que participei na escrita em blogs, apontei ao Miguel Esteves Cardoso, no Pastilhas, um erro de palamtória: costoleta em vez de costeleta. Fiz o reparo, adiantando que a palavra não viria certamente de "costolas". E a resposta que me deu, desconcertou-me.
Disse-me: "É verdade! Apanhou-me! "
E logo ali, naquele instante em que li a resposta, tive a noção exacta do meu papel, um bocado ridículo, de caçador de gralhas alheias a troco de mesquinhas humilhações gratuitas.
Não é o caso, que fique registado!
É mais uma brincadeira, por causa da outra vez...
Havias de experimentar ser dragão, ó José. Para veres se quando uma besta mitológica está a cuspir labaredas, de rajada, tem tempo para essas minudências. Grelho gralhas, grelho grelhas e grelho o que mais houver!... :O)
Todavia, eu podia ser sacana e dizer-te que o termo significava "não-cépticas", ou seja, eufóricas, optimistas, etc. Até nem destoava do sentido da frase...
Mas não. Era mesmo "asséptico" que eu queria dizer. E é de facto uma puta duma gralha, eh-eh. Não te preocupes, vou já dar cabo dela.
Essas vacas vieram ao mundo para me assolarem as prosas, para me cobrirem de ridículo e vergonha, diabos as levem!...
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